Título: Contorcionismo e reforma tributária
Autor: Rogério L. F. Werneck
Fonte: O Estado de São Paulo, 25/02/2005, Economia, p. B2

As dificuldades de manter o ICMS como cerne da taxação de valor adicionado no País se tornam a cada dia mais gritantes. Basta ter em conta a última novidade. Ilustra bem a que ponto chegou o contorcionismo envolvido na tarefa insana de tentar dar racionalidade a essa jabuticaba genuinamente brasileira que é o imposto sobre valor adicionado cobrado na esfera estadual. O governo descobriu agora que, para que as exportações sejam de fato desoneradas de ICMS e as empresas exportadoras possam ser ressarcidas pelo imposto pago nas aquisições de insumos feitas em outro Estado, vai ser necessário que o tributo volte a incidir sobre todas as exportações. No novo arranjo, o ressarcimento passaria a ser feito em dinheiro, com recursos federais e estaduais aportados a um fundo gerido pela União. O interminável esforço de quadratura do círculo deixa cada vez mais claro que chegou o momento de dotar o País de sistema mais racional de taxação do valor adicionado. Na mensagem enviada ao Congresso por ocasião da abertura dos trabalhos legislativos, o governo fez saber que espera ver aprovada, ainda este ano, a segunda etapa da reforma tributária, que trata do ordenamento e da unificação do ICMS. Naturalmente, não falta quem veja tal expectativa como fantasiosa. Com boa parte do Congresso dando mostras de que quer mesmo é cair na vida severina, pode parecer ingênuo esperar que projeto tão complexo - de digestão difícil até para um parlamento mais estruturado - venha a ser aprovado ainda em 2005. Será mais do que louvável, portanto, se o governo, já no seu terceiro ano de mandato, não se deixar intimidar por embaraços no Congresso e de fato se dispuser a mobilizar capital político para fazer avançar a reforma tributária. Caso esteja disposto a tanto, o governo deve ter em mente que, para reduzir as resistências às mudanças que se fazem necessárias, terá de delinear com mais cuidado o sistema tributário que a reforma vislumbra em prazo mais longo.

No projeto de reforma de 2003, parcialmente aprovado no início de 2004, o que se contempla é que a unificação do ICMS seja apenas etapa intermediária, que logo possa dar lugar a mudança mais ambiciosa. A idéia é evoluir para esquema de taxação ampla do valor adicionado, gerido nacionalmente, que permita eliminar não só o ICMS, mas também outros tributos indiretos, como IPI, ISS, PIS e Cofins. A grande questão, claro, é como acomodar reconstrução tão radical da tributação de bens e serviços no complexo arranjo de federalismo fiscal que tem o País. Como convencer os Estados a abrir mão do controle direto que hoje têm sobre a arrecadação do ICMS em troca da receita compartilhada de um imposto nacional sobre valor adicionado?

As resistências ao avanço da reforma estão fadadas a ser desnecessariamente exacerbadas se o que se contempla mais à frente é a eliminação total da arrecadação estadual de impostos sobre bens e serviços. E a verdade é que não há nenhuma razão para se ir tão longe. É perfeitamente possível conceber sistema moderno e eficiente de tributação do valor adicionado que ainda deixe a esfera estadual com controle direto sobre parte substancial da arrecadação que hoje tem.

É bom lembrar que cerca de 40% da receita agregada de ICMS tem advindo da taxação, com alíquotas extremamente altas, de pequeno número de bens e serviços, como telecomunicações, eletricidade e combustíveis. Há que reconhecer que o ICMS cobrado sobre tais bens e serviços passou a ter de fato caráter de imposto excisório. No caso de telecomunicações, por exemplo, há Estados praticando alíquotas de 30%, o que equivale a mais de 40% quando calculado "por fora".

Nada impede que a reforma torne explícito esse arranjo e conceda aos Estados competência e liberdade para cobrar imposto excisório sobre um conjunto restrito de bens e serviços, desde que sejam de consumo final e consumidos no próprio Estado. Por exemplo, consumo residencial de energia elétrica e telecomunicações, combustíveis para uso final, bebidas, fumo, bens duráveis de consumo e automóveis. Se a receita proveniente desse imposto puder alcançar cerca de 30% da atual receita agregada do ICMS, os Estados já teriam assegurado nível razoável de arrecadação própria. Grande o suficiente para tornar mais crível a quebra de suas resistências ao reconhecimento dos benefícios da criação de um imposto nacional sobre valor adicionado, com receita compartilhada pelos três níveis de governo.

*Rogério L. Furquim Werneck, economista, doutor pela Universidade Harvard, é professor-titular do Departamento de Economia da PUC-Rio