Título: Como justificar o aborto?
Autor: Carlos Alberto Rabaça
Fonte: Jornal do Brasil, 20/01/2005, Opinião, p. A8

Dados da Organização Mundial de Saúde indicam que, no Brasil, a cada ano são feitos de 800 mil a 1 milhão de abortos clandestinos, mais do que em todos os outros países da América do Sul. Os países com as menores taxas de abortos são os da Europa Ocidental, que oferecem ampla educação social nas escolas, informação e fácil acesso a métodos anticoncepcionais.

Esta é certamente uma questão complexa, não somente do ponto de vista religioso mas também filosófico e moral. Agora, o governo decidiu propor a revisão da legislação sobre aborto no país. A Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres pretende tirar o caráter punitivo - hoje é considerado crime - para assegurar assistência a mulheres que sofrem complicações decorrentes da interrupção voluntária da gravidez. Cerca de 250 mil mulheres são internadas a cada ano, com um grande número de mortes, devido a essa prática, que é a quinta causa de internações femininas no SUS.

Há três posições básicas a respeito desse assunto. A igreja católica vê no aborto um homicídio injustificável. Por outro lado, existem aqueles que o consideram justificável em algumas circunstâncias. E os que não o vêem de forma alguma como homicídio, pois o que está no útero não seria ainda humano. Os defensores desta posição gostam de proclamar-se como humanitários. Aliás, não há quem não queira sentir-se humanitário. Matar uma criança para salvar a vida da mãe tem sido defendido por grupos pró-aborto há muitos anos. Mas matar uma criança por uma conveniência da mãe - relutância com a gravidez, dificuldade financeira ou preocupação com o desemprego - e querer que se aceite isso é pedir demais ao sentido humanitário da grande maioria das pessoas.

É significativo que os defensores da ''livre escolha da mãe'' nunca falem de crianças não-nascidas, mas sim ''embrião'' ou ''feto'', e defendem que essa ''vida potencial'' somente se torna humana - com os correspondentes direitos - a partir do nascimento ou do momento em que o feto está quase totalmente formado. Pode alguém defender a sério que o recém-nascido é humano, mas que aquele mesmo ser, algumas horas antes, ainda no ventre da mãe, não o era?

Segundo a Declaração dos Direitos da Criança, aprovada em 1959 pela ONU, ''a criança, em virtude da sua falta de maturidade física e intelectual, necessita de especial proteção e cuidados, incluindo adequada proteção legal, tanto antes como depois de seu nascimento''. Verdadeiramente, a criança não-nascida já é um ser humano, do qual o principal direito é o direito à vida. E a sua situação particular como ser humano indefeso lhe confere o direito a uma proteção especial por parte da lei civil.

A base essencial dos direitos democráticos é que todo ser humano é um valor inviolável e que nenhum Estado, nenhuma autoridade, nenhuma pessoa pode decidir que a vida do outro é inútil e dispensável. Humanitarismo é perceber que alguém está vivendo em condições indignas e, a partir daí, fazer todos os esforços para melhorar essas condições. Decidir que alguém não é digno de viver seria um juízo totalitário, e não humanitário.

A questão não se esgota no pouco espaço dessas considerações. Há razões de todos os lados e somente uma pessoa totalmente rígida diante do outro não percebe a complexidade do tema. Mas nos parece evidente que a prática do aborto, liberada ou proibida porém tolerada, é uma forma de destruir as sementes de sobrevivência que nossa civilização traz dentro de si. Se existe uma vida, mesmo ainda em formação, é porque existe uma fonte de infinita vida da qual aquela emana. Por isso, ela deve ser amada, resguardada e respeitada.