Título: Crise da democracia: os burocratas
Autor: IVES GANDRA MARTINS
Fonte: Jornal do Brasil, 02/12/2004, Outras Opiniões, p. A-11

Outro aspecto a conformar o estado mastodôntico é o papel dos burocratas. Os servidores públicos de carreira. Aqueles que entram no ser viço público, muitas vezes, vivem sem maior interesse pela sociedade, e pensam apenas em sua aposentadoria para gozar, com folga, o repouso futuro.

São, de rigor, como diria Alvim Toffler, na Terceira onda, os integradores do poder. Os políticos só governam, alicerçados em sua ação.

Quase sempre oferecem muita resistência a qualquer mudança. Acostumados dentro de determinadas rotinas, a mudança causa-lhes calafrios e são os primeiros a tentar bloqueá-las. Sua concepção é casuística, em que o cargo dá dignidade à pessoa. A grande maioria é honesta, mas atribui à administração pública --que confundem com o poder-- um papel mais relevante do que à própria sociedade.

Neste aspecto reside o grande problema. O burocrata pensa que a sociedade está a seu serviço. E, à evidência, seu poder, no tempo, confunde-se com seu direito.

Como os políticos passam e os burocratas permanecem, são eles os verdadeiros formuladores das políticas governamentais, principalmente nos países parlamentaristas.

Integram o poder, com que, normalmente, se identificam, e terminam confundindo seus próprios interesses com aqueles da Nação, em confusão que reduz a cidadania a expressão inferior.

Concursados ou escolhidos para serem ''servidores públicos'', como determina a expressão, no mais das vezes, passam a exercer o poder burocrático como se coubesse a nação servi-los, e não eles à nação. O povo é que acaba estando à disposição destes detentores do poder, através de tributos ou das exageradas exigências burocráticas, criadas para aumentar seus quadros e justificar sua ação, em muitos casos, desnecessárias e inibidoras das potencialidades da sociedade.

Os governantes, políticos e burocratas, quase sempre agem de comum acordo. E cada alteração de poder, pelos políticos, não corresponde a idêntica alteração por parte dos burocratas, que deixam os quadros funcionais em menor número do que aqueles que nele entram pelas mãos de novas administrações. E os concursados, efetivados e estáveis não há, sequer, como pensar em afastá-los.

Por melhor que seja o burocrata, o tempo leva-o a identificar-se mais com o poder do que com a sociedade, de tal maneira que quase sempre atende ao cidadão com o ar de superioridade, como se tivesse o poder de vida e de morte sobre os ''governados''.

Hart, em seu livro Concept of law, explica que, nos Estados Democráticos, as leis são feitas para serem aplicadas a governantes e governados, mas, como são feitas pelos governantes, quase sempre são aplicadas contra os governados e a favor dos governantes.

De rigor, é o que ocorre com a burocracia.

E a burocracia não profissionalizada, isto é, formada pelos correligionários dos partidos vencedores, é ainda pior, na medida em que tais burocratas só se tornaram burocratas por interesse político e não por vocação funcional. E, neste caso, a identificação com o poder é muito maior. São, em verdade, os verdadeiros senhores da máquina administrativa, nos países onde não há burocracia profissionalizada.

O melhor caminho para reduzir o efeitos nocivos da identificação do burocrata com o poder reside na denominada ''burocracia profissionalizada'', em que a carreira funcional e o mérito no seu exercício, assim como a antiguidade, são que promovem o agente público, levando-o, portanto, a maior cautela e maior respeito à sociedade.

O certo, todavia, é que, no Brasil, não temos burocracia profissionalizada, a não ser nas carreiras militares e no Itamaraty. Os cargos de confiança, que são os mais altos da Administração Pública, são preenchidos por pessoas que, quase nunca são funcionários de carreira, mas ligadas aos políticos.

Esta experiência não tem sido boa.