Título: Lula e o susto letal da oposição
Autor: Candido Mendes
Fonte: Jornal do Brasil, 22/02/2006, Outras Opiniões, p. A11

A subida de Lula na volta às boas graças do voto, em fins de janeiro, reverteu toda visão pessimista para a reeleição. Não é sazonal o avanço, mas pertinaz, e o sabem os adversários. Passado o castigo do mensalão, o país volta ao leito das certezas prévias, de antes das denúncias de Roberto Jefferson. Vai-se ao novo pleito com mais que uma erosão progressiva do petista que tivesse atingido, fatidicamente, as suas bases. A vitória clara no primeiro turno, avantajada desde agora numa segunda rodada, já impactou, a largo prazo, a estratégia das oposições. Desapareceram as favas contadas do êxito tucano, mais retumbante ou não ¿ assim se pensava em dezembro ¿ consoante a escolha de Serra ou Alckmin. A nova teimosia do governador de São Paulo é indício do se fortalecer agora para vir à briga após o bis no Planalto. Não importa a estratégia petista, de demorar-se Lula a assumir a reeleição, senão para impor ao outro lado as areias movediças dos ¿vais e vens¿ e ¿disse que disse¿ das alianças eleitorais. A este atraso tático do presidente se soma também o do PMDB, ainda hesitante na partilha da chapa já, ou de se ver como decisor do segundo turno, com candidatura própria de saída. Afinal o lugar das oposições está tomado e o poder de barganha do grande partido remanescente é agora, tanto a certeza crescente da vitória de Lula não o libera, também, do novo entrevero. O abandono da verticalização e a desenvoltura para todos os arreglos, convidaria pretendentes mais sôfregos a assegurar o continuísmo do Planalto que não precisa, mais, de qualquer lógica de conseqüência política. E o balaio está cheio de propostas que Lula encarará, prospectivamente, e não como paga de lealdades antigas, mensalão ou não.

Na concessão que faça, agora, de nomes de governadores o petismo consolidará os enraizamentos regionais, que tanto lhe faltaram em 2002. E o PMDB, afinal, não tem hoje outro comprador do que o governo para se amarrar ao perfil de Sarney, Calheiros ou Roberto Requião. Desta cesta só escapa o que é mesmo ovo de outra ninhada e tem fôlego para sobreviver como partido, a longo prazo, à alternativa constrangedora que é a do evangelismo de Anthony Garotinho. Bem haja o Planalto que lhe opõe, já, o apoio a Crivela, a mostrar a desinibição do novo situacionismo.

O que torna letal o susto das oposições com a ressubida de Lula é o quanto se manteve intocado o potencial de votos do país de base. Fica é a identidade com o presidente, num capital político que é só seu e que passa, nas novas eleições, por um veredito decisivo, quanto às chances de mudança qualitativa do processo político brasileiro. Lula sem o PT mas guardando a esperança popular, e logrando, numa solidão única, investir-se ao mandato dos riscos políticos, em bem das garantias históricas do a que veio. Sabe-o bem o presidente, e do quanto venceu o desgaste do mensalão, e tem hoje moeda de troca decisiva não com os partidos, mas com o Brasil que continuou a crer.

Como ficarão os coeficientes de aprovação a Lula, depois da efetiva entrada em vigor do novo salário mínimo; do avanço disparado do programa da Bolsa-Família, ou do auxílio alimentar, ou da passagem do sucesso da estabilidade, ao reforço ao desenvolvimento social do país? Mas que governo será este para além do purismo ideológico ou do moralismo sanitário, que devastaram os seus primeiros quadros? Como avançará o novo Planalto, movido pela intuição política de um Presidente que continue, no deserto do partido, que viveu a experiência inevitável, da perda da inocência diante da avidez do desfrute do poder? O deslumbre de Delúbio foi a prova da sua virgindade de acesso a um Estado congenitamente clientelista, corrupto, e vacinado para assim continuar.

Vai-se à eleição com o Legislativo exposto à maior desmoralização da sua história, que só deverá eleger 6% dos seus atuais representantes, e de um Judiciário que, a bem, sempre da cosanostra inarredável, nega-se a esvaziar os seus gabinetes do nepotismo, tamanho família, e paga como trabalha, sempre unida.

O Brasil de base não se atingiu pelo denuncismo e espanta o castigo moralista, de vez, desmoralizado, tanto os seus algozes esplendem no respingo universal do valerioduto. É um Lula, singularmente desenvolto, o que deverá ir à renovação do mandato nesta responsabilidade inédita de evitar o populismo; e não temer, frente aos puristas uma política social distributivista como a engendrada pelo Bolsa-Família ¿ ainda que sob o palavrão do assistencialismo ¿ e sobretudo consciente da modéstia de uma primeira e efetiva garantia de emprego, diante do modelo econômico acolhido pelo país.

O Brasil de fundo, que vota, não se comporta como a classe média. Mantém a sua paciência, cobra a sua identidade, não se expõe aos contágios perdulários de consumo, frui o que ganha no passo a passo do que recebe. A alavanca única de Lula é a desta economia frugal, que não transfira ao país marginal o sonho de consumo dos ricos e semi-ricos, nem a sua sofreguidão de mudança, ou o volátil das suas lealdades. E impõe ao presidente uma humildade desmesurada para responder, de vez, ao que veio. E desborda, de muito, o homem em função do símbolo político. O Lula em quem se votará é o mandatário desta pulsão, de fundo, que sobreviveu às falhas da pessoa, e às diatribes proverbiais do Brasil instalado. A aposta, mais que nova, é inédita. Ela se propõe, à custa da rebordosa dos desencantos de 2005. Mas sua alternativa é o retrocesso ao Brasil de todo o sempre.