Título: A aventura da genética literária
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 18/02/2006, Idéias & Livros, p. 1

Para mergulhar nos mais de 20 mil documentos referentes a Guimarães Rosa e arquivados no acervo do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), na USP, é preciso ter, além de muito fôlego, um confortável casaco à mão. O cuidado com a preservação dos escritos é tamanho que a sala, onde estão armazenadas raridades de inúmeros escritores, entre eles Graciliano Ramos, José de Alencar e Carlos Drummond de Andrade, tem temperatura especial de 18 graus. Perfeita para o tipo de documentações. Só de Rosa, estão lá manuscritos, originais, cartas (mais de 1.500), recortes de jornais, cadernetas e diários de viagem. Além de uma biblioteca, composta por 3 mil livros que eram de propriedade do escritor.

¿ É um rico material para rosianos e curiosos. Pelo acervo é possível fazer uma detalhada análise via genética literária ¿ ressalta o vice-diretor do IEB, professor e geógrafo Heinz Dieter Heidemann. Um alemão que se apaixonou pelo Brasil e por aqui ficou através de um novo olhar sobre os sertões obtido na leitura dos livros de Rosa.

Heidemann, ainda na Alemanha, fazia estudos sobre o sertão nordestino, quando veio ao Brasil pela primeira vez. O que para o geógrafo, no início, era só caatinga, com o tempo e o conhecimento cada vez mais profundo da obra do escritor mineiro, se tornou cerrado e veredas. Hoje, tem uma casa em Andrequicé, em Minas Gerais, que faz parte do trajeto percorrido por Rosa em 1952 ¿, é casado com uma brasileira, Marily Bezerra (também uma rosiana e coordenadora do projeto Casa da Cultura do Sertão), além de ser um dos idealizadores da Oficina Guimarães Rosa, do IEB.

¿ Todas as terças-feiras, há um encontro aqui, onde realizamos uma leitura coletiva e em voz alta das obras dele ¿ detalha Heidemann.

Participantes da oficina e voluntários no trabalho no acervo, os pesquisadores Mônica Gama, Daniel Bonomo e Vitor Borysow desenvolvem estudos a partir dos documentos do escritor. No caminho, muitas histórias e detalhes pitorescos são encontrados.

Quando estavam analisando as cadernetas de Rosa, notaram que havia um cordãozinho amarrado em cada uma delas. Era o meio com que carregava suas anotações, para onde fosse, presas na camisa. Mesmo cavalgando, durante os 240 km da viagem, anotava a cada minuto. Em cima da mula Balalaika, descrevia as boiadas, a chegada ao Rio São Francisco, o que os vaqueiros falavam. Os escritos oscilavam de acordo com o lugar por onde passava: ora letra firme, com direito aos seus típicos desenhos no meio do texto, ora com um lápis fraquinho, num ziguezague que parecia seguir o ritmo da mula.

¿ Rosa era tão organizado e metódico que depois datilografou seus ¿diários de viagens¿ ¿ conta Borysow.

A paixão dele pelos animais também está documentada. Guardava recortes de jornais, nas mais diversas línguas, sobre gatos, bois, cavalos. E mais: traduzia as matérias dos jornais europeus. Segundo Mônica, os animais não marcam a obra de Rosa à toa, não são meras alegorias. Mostram, sobretudo, a riqueza do processo de criação:

¿ Seu processo literário de não era tão linear, como costumam dizer. Muito menos se restringe ao sertão brasileiro. Dizer que Rosa era apenas regionalista é retornarmos ao pensamento de 50 anos atrás. O sertão de Rosa era e é universal ¿ ressalta Mônica.

A vaidade do escritor é identificada nas pastas em que guardava as matérias que saíam a respeito de sua obra. As críticas positivas ficavam de ¿cabeça para cima¿; as negativas, de ¿cabeça para baixo¿. Estava ao contrário, por exemplo, o texto em que Nelson Rodrigues descreve Rosa como um escritor preso em sua torre de marfim.

Nas raras entrevistas que concedeu à imprensa ¿ conta Bonomo ¿ encontra-se um Rosa metafísico, meio mago das palavras, que fazia questão de manter um ar de mistério. Para Mônica, as entrevistas que também compõem o acervo revelam mais do que isso:

¿ Além de tudo, ele foi um grande marqueteiro.