Título: Alianças e federação
Autor: Mauro Santayana
Fonte: Jornal do Brasil, 10/02/2006, País, p. A2

O fim da exigência da verticalização das alianças partidárias, decidido pelo Parlamento, é uma vitória da realidade social e política da Federação contra os partidários do estado unitário. Outra decisão descentralizadora é a nova disciplina imposta ao instituto das medidas provisórias, aprovada pelo Senado Federal e dependendo da Câmara dos Deputados. O melhor será extingui-las da Constituição. O direito de exercer a legislação de urgência, comum ao parlamentarismo, é, no presidencialismo, inaceitável ingerência do poder executivo sobre o Parlamento. A separação dos poderes não admite que o Executivo legisle, nem mesmo provisoriamente. O chefe de governo pode, em casos que sejam constitucionalmente previstos (como declaração de guerra) tomar iniciativas graves ad referendum do Congresso, e a ele enviar seus projetos. Mas, nunca, a pretexto de urgência e de relevância, usurpar as prerrogativas parlamentares de legislar. Foram adotadas duas medidas de bom senso. Desde a proclamação, a República tem hesitado em assumir sua plena natureza. Entende-se que, nos primeiros decênios, ela se tenha sentido constrangida. Seus dirigentes eram, em sua maior parte, próceres do antigo regime. Monarquistas convictos, entre outros, foram Deodoro da Fonseca, Ruy Barbosa e Joaquim Nabuco. O militar aceitara fundar a República pela conjuntura política do momento, a que se juntavam motivos muito pessoais, conforme relatam os historiadores. Ele se opunha ao Visconde de Ouro Preto e não aceitava a substituição do primeiro-ministro pelo gaúcho Gaspar da Silveira Martins. Nabuco e Ruy, conforme declararam várias vezes, só se fizeram republicanos porque eram federalistas. Inspirados na experiência norte-americana, entenderam que a centralização do poder era entrave ao desenvolvimento social e econômico de um país como o Brasil. Seu bom senso indicava que a autonomia política regional é indispensável para assegurar a liberdade de pensar, planejar e construir, em benefício do todo nacional. Mais: a idéia de federação, no Brasil, era muito anterior à Independência, e esteve presente nos primeiros debates da Assembléia Constituinte de 1823.

Ao longo de mais de um século, as forças centralizadoras têm aceitado o sistema republicano, mas não o princípio federativo. O excessivo poder do presidente da República, que elas controlam mediante a influência das corporações privadas, é-lhes indispensável para manter a hegemonia sobre o território nacional. Dominando, desde São Paulo, as forças econômicas, preferem que o poder se resuma aos gabinetes de Brasília. Nessa associação decidem o que lhes interessa, nesse ou naquele estado. A situação tem sido agravada desde o governo militar. Os governos que o sucederam deixaram-se seduzir pelo excessivo poder herdado, e continuaram mantendo os estados sob o jugo da concentração tributária. O governo Fernando Henrique, ao combinar o arrocho fiscal com a centralização federal da dívida pública das unidades federadas, e a privatização dos bancos estaduais, acabou, praticamente, com a federação, isso sem falar em dispositivos da Lei de Responsabilidade Fiscal, ditados por Washington. Verticalização seria outro entrave à autonomia das populações na formação dos governos em seus estados.

Não há partidos nacionais no Brasil, e é de se perguntar se existem partidos políticos, ou se há apenas grupos que se articulam em sociedades eleitorais, necessárias para o acesso ao poder. Nos estados é de se presumir que esses grupos busquem defender os projetos comuns, e que formem, assim, suas próprias coligações. Os partidos nacionais não passam de federações de partidos regionais, e o território, com sua população, é que constitui a realidade política. Com o fim das verticalizações, as coisas voltam ao natural.

Estamos chegando a um ponto em que a reação federativa deverá tomar corpo. Ela já se manifesta no mal-estar generalizado diante da falta de um candidato presidencial independente das forças econômicas e políticas de São Paulo, tradicionalmente centralizadoras.

O fim das verticalizações pode dar novo estímulo ao debate federativo.