Título: De torturador a 'torturado'
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Fonte: Jornal do Brasil, 22/12/2005, Internacional, p. A7

O ex-ditador iraquiano Saddam Hussein voltou ontem ao Tribunal Especial Iraquiano e, mais uma vez, transformou a audiência em um show. Disse ter sido ''espancado e torturado'' pelos americanos na prisão na mesma sessão em que uma testemunha contou como todos os 43 membros de sua família foram presos e submetidos a tratamento desumano durante o massacre de xiitas na cidade de Dujail, em 1982.

Já estava no final da audiência quando Saddam virou-se para os outros sete acusados da morte de 148 xiitas e declarou que seus aliados receberam, dos americanos, golpes de fuzil na cabeça:

- Sim, fui espancado em cada parte de meu corpo e os sinais estão visíveis - insistiu, dizendo que havia decidido falar para ''esclarecer os iraquianos e a opinião pública mundial''.

Em resposta ao procurador Jaafar al-Moussaoui, que propôs ''transferir toda a responsabilidade sobre os presos para as forças iraquianas'', Saddam disse: ''Não culpo os americanos''.

A Casa Branca qualificou as afirmações de ''ridículas'', enquanto o diplomata americano Christopher Reid disse tratar-se de ''uma manobra estratégica''.

Duas testemunhas deram detalhes das torturas sofridas, às vezes na presença de Barzan Ibrahim al-Tikriti, meio-irmão do ex-ditador, responsável pelos serviços de segurança na repressão a Dujail, após um ataque contra o comboio de Saddam.

O réu estava atento aos depoimentos e fez muitas anotações. A primeira testemunha, Ali Hassan Mohammed al-Haidari, que teve 43 parentes presos, lembrou, com o rosto descoberto, as torturas e execuções sumárias de moradores da cidade. Sete de seus irmãos foram executados.

- Não posso descrever o que sofremos. Eles levavam um de nós para dentro e traziam um corpo enrolado num pano cheio de sangue - contou, afirmando que a tortura ocorreu na sede do partido Baath, do ex-ditador. - Era assustador. O banheiro estava lotado porque éramos muitos. Todos passaram mal - acrescentou o xiita, que tinha 14 anos na época.

Haydari afirmou que alguns parentes foram levados à prisão de Abu Ghraib, em Bagdá, antes de serem exilados, por anos, num assentamento.

- Durante quatro anos, ninguém me interrogou. Nunca soube porque fui preso - denunciou.

Uma segunda testemunha, que depôs atrás de uma cortina e teve a voz modificada eletronicamente, disse ter recebido choques elétricos após identificar dois de seus filhos, mortos no massacre.

- Barzan ficava sentado em sua cadeira, comendo uvas - disse o xiita, que disse ter passado por três sessões de tortura.

Barzan irritou-se e por vezes disse que as testemunhas estavam mentindo.Ao juiz curdo Rizkar Mohammed Amim, disse que se ele ''fosse realmente iraquiano, estaria no banco dos réus''.

Durante os depoimentos, Saddam pediu, sem ser atendido, o adiamento da audiência para que pudesse rezar. Tendo o pedido negado, virou sua cadeira em direção à Meca e fez suas preces durante 10 minutos, enquanto uma das testemunhas continuava a falar.

Depois de oito horas de ouvindo testemunhas, a corte suspendeu, até hoje, o julgamento, que deverá ser interrompido até janeiro, devido à tradicional peregrinação à Meca e à divulgação dos resultados das eleições legislativas do país.