O Globo, n. 32575, 14/10/2022. Política, p. 6

Dama­res ouviu ‘na rua’ sobre abu­sos infan­tis

Bruno Abbud
Mariana Muniz
Paula Ferreira


Cobrada a apresentar provas sobre afirmações que fez sobre tráfico e abuso sexual de crianças na Ilha do Marajó, no Pará, a ex-ministra e senadora eleita Damares Alves (Republicanos-DF) afirmou ontem que tratam se de relatos que ouviu “na rua”. O MPF informou que atuou em quatro inquéritos para investigar denúncias sobre tráfico internacional de crianças que teriam ocorrido nos últimos trinta anos no arquipélago, mas nenhuma tinha nada semelhante às torturas descritas pela ex-ministra. Outras autoridades também negaram ter recebido denúncias desse tipo.

No início da semana, o Ministério Público Federal (MPF) no Pará e outras autoridades pediram informações ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, que foi dirigido por Damares entre janeiro de 2019 e março deste ano, sobre os crimes que ela citou em um culto da Assembleia de Deus Ministério Fama, em Goiânia, no sábado passado, e que agora indica não ter como comprovar.

— O que eu falo no meu vídeo são as conversas que eu tenho com o povo na rua. Eu não tenho acesso, os dados são sigilosos. Mas nenhuma denúncia que chegou na ouvidoria deixou de ser encaminhada — disse Damares ontem, em entrevista à Rádio Bandeirantes.

‘Mentir é crime no Brasil?’

Num vídeo difundido nas redes sociais que registra sua fala na igreja evangélica, Damares afirma ter evidências de que crianças da Ilha de Marajó são traficadas e têm seus dentes “arrancados para elas não morderem na hora do sexo oral”. Também disse que, em poder dos sequestradores, elas só se alimentam de “comida pastosa para o intestino ficar livre para a hora do sexo anal”.

As declarações chocaram a opinião pública e autoridades cobraram explicações.

Procurada pelo GLOBO, Damares disse que “não subiria no púlpito de uma igreja para mentir e ir para o inferno ”.

— Se é para eu sair de mentirosa, deixa. Mentir é crime no Brasil? Vocês querem desacreditar a palavra de uma mulher que tem 42 anos de luta em defesa da criança? — afirmou a ministra ao GLOBO.

— Respondo quando a Justiça me intimar, pode ser assim? Deixa a Justiça me intimar.

A ex-ministra disse que esse tipo de violência não acontece apenas na localidade do Pará, mas em outras regiões de fronteira. Segundo ela, houve denúncias recebidas pela ouvidoria do ministério que, por isso, criou o programa Abrace o Marajó para levar desenvolvimento social à região.

Dados do Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento do Governo Federal (Siop) mostram que, até o momento, a apenas dois meses do fim do ano, o governo não gastou efetivamente nem um real com o programa, apesar da previsão orçamentária de R$ 3 milhões. Foram empenhados apenas R$ 51 mil. Em 2021, foram gastos cerca de R$ 2 milhões com o Abrace o Marajó.  A baixa execução foi noticiada pelo jornal O Estado de S. Paulo e confirmada pelo GLOBO. O ministério, que havia anunciado investimentos de até R$ 950 milhões em ações na região, não quis se pronunciar.

Recém-eleita senadora pelo Distrito Federal e engajada na campanha de reeleição do presidente Jair Bolsonaro (PL ), Damares se queixou ontem de ter suas declarações utilizadas eleitoralmente e argumentou que a investigação cabe ao Ministério Público e à polícia.

Em nota, o MPF do Pará diz que segue aguardando informações do ministério que foi liderado por Damares para que uma investigação possa ser iniciada, incluindo quais providências a pasta tomou ao descobrir os casos citados pela senadora eleita e se houve comunicação à polícia ou ao MP. O Ministério Público do Estado do Pará (MPPA) também divulgou nota informando que não recebeu denúncia formal e aguarda informações do governo.

STF recusa ação

Ontem, o ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou que a Justiça Federal do Pará decida se deve abrir uma investigação para apurar as declarações de Damares. Em resposta a uma ação do grupo de advogados Prerrogativas, que tem integrantes próximos do ex-presidente Lula    (PT), o ministro afirmou que não cabe ao STF analisar o caso, visto que Damares não tem foro privilegiado. O grupo argumenta que, se tomou conhecimento dos casos e não pediu investigação, Damares pode ter cometido crime de prevaricação.

Após a repercussão das declarações de Damares, a pasta que ela dirigiu divulgou nota afirmando que havia “numerosos inquéritos já instaurados que dão conta de uma série de fatos gravíssimos praticados contra crianças e adolescentes”, mas não informou se a ex-ministra denunciou ou não os casos que diz ter presenciado a alguma autoridade competente.

Lenda na internet

Como mostrou O GLOBO na terça-feira, a história de horror envolvendo crianças vítimas de escravidão sexual contada pela ex-ministra circula em fóruns obscuros da internet como ficção, em uma versão com algumas diferenças, desde no mínimo 2010. O site 4chan, conhecido por seu conteúdo satírico e de violência extrema, publicou um relato anônimo em 2010, que contém diversas semelhanças com o suposto crime descrito por Damares, o que foi apontado por internautas no Twitter.

Os textos do 4chan em geral são chamados de “textos verdes” (greentexts), um subgênero narrativo da internet no qual pessoas contam experiências bizarras e chocantes, numa forma de ficção totalmente desprovida de evidências ou autoria. Ainda assim, por vezes estes textos são distorcidos e reproduzidos como verdadeiros.