Valor Econômico, n. 4955, 10/03/2020. Legislação & Tributos, p. E2

Personalização de ofertas e defesa do consumidor
Victor D. X. da Silveira
Alexandre P. da Silva


A regulação da economia digital enfrenta um desafio recorrente: como é possível disciplinar juridicamente novos modelos de negócio na internet, protegendo usuários de eventuais abusos e, ao mesmo tempo, preservando a livre-iniciativa de agentes econômicos e os incentivos de mercado ao desenvolvimento tecnológico? A questão, que não é trivial, tem chamado a atenção de especialistas interessados na proteção do consumidor, compreensivelmente preocupados com a capacidade dos diplomas legais de lidar com o desafio.

Nesse contexto, ganha relevância o debate sobre a personalização de preços - prática comercial que consiste em cobrar preços diferentes sobre os mesmos produtos, a partir dos dados pessoais de usuários de plataformas digitais. O tratamento de grandes volumes de dados (big data) por algoritmos surge aqui como um diferencial dos negócios digitais, permitindo a eles aferir a disposição a pagar de consumidores em nível quase individualizado, cobrando de alguns consumidores e menos de outros.

Na prática, isso traz ganhos de eficiência e permite que produtos cheguem a segmentos de consumidores que, de outra forma, não teriam condições de adquiri-los. No limite, isso pode produzir um ganho de bem-estar social do consumidor: em média, a totalidade dos consumidores passa a poder adquirir o produto a condições mais favoráveis, ainda que alguns deles passem a pagar preços maiores do que pagariam se os preços fossem definidos de modo uniforme. A legalidade da prática, no entanto, foi posta em questão no último mês, com a recente decisão do Procon-SP em multar empresa em R$ 1,2 milhão por supostamente oferecer preços diferentes a consumidores no Brasil e na Argentina, a partir de dados de geolocalização.

O ocorrido levanta um questionamento pertinente: faz sentido, à luz do Código de Defesa do Consumidor (CDC), considerar ilegal que empresas façam ofertas distintas a seus diferentes consumidores, diferenciando-os a partir de dados que refletem sua disposição em pagar por um produto?

Entendemos que não é o caso. Se esse entendimento fosse adotado, seria lógico concluir que também seria ilícito oferecer meia-entrada em cinemas a determinadas categorias (idosos ou estudantes) ou a clientes de determinados bancos ou operadoras de telefonia - o que parece, é claro, absurdo. Da mesma forma, o raciocínio autorizaria considerar ilícito o oferecimento de descontos a clientes fidelizados (planos de milhagem de companhias aéreas, por exemplo) ou a clientes que adquirem volumes grandes de um mesmo produto - o que parece igualmente descabido. Em outras palavras, a diferenciação de preços entre consumidores é praticada normalmente em uma série de hipóteses plenamente conhecidas e consideradas legítimas pelo público.

A aplicação mais adequada do dispositivo, assim, exige uma consideração sobre quais tipos de discriminação são razoáveis à luz da legislação, dos princípios e dos costumes comerciais, e quais não são. A diferenciação de preços feita com base nas chamadas características protegidas, como raça, etnia, gênero, orientação sexual ou religião, por exemplo, pode produzir situações de discriminação indevida, o que poderia justificar sua restrição ou proibição à luz do CDC. Deduzir quais critérios de discriminação seriam ilícitos é uma tarefa complexa, que exige certo grau de construção interpretativa.

No entanto, não parece que a diferenciação de preços com base na localização geográfica de consumidores (geopricing) seja abusiva - ao menos, não necessariamente. A localização de consumidores pode ser um dado relevante para se aferir a sua disposição em pagar, permitindo, inclusive, a concessão de descontos a consumidores que de outra forma não poderiam (ou não quereriam) adquirir o produto. É o caso, por exemplo, de uma rede de varejo que decide ofertar produtos similares a condições diferentes em duas praças, por perceber uma diferença na disposição em pagar de consumidores que compram habitualmente nelas. A mesma lógica parece se aplicar a plataformas digitais que diferenciam usuários com base em sua localização.

Além disso, a diferenciação geográfica pode ser justificada do ponto de vista de custo econômico: atender a consumidores em localizações diferentes pode implicar em custos diferentes para um mesmo vendedor - em especial quando este vendedor mantém firmas distintas em duas praças, cada qual com o seu próprio regime tributário, tarifário, regulatório, relações contratuais e, por vezes, com sua própria moeda corrente.

O comércio eletrônico não é (e nem deve ser) uma terra sem lei: mercados digitais não podem discriminar seus consumidores a partir de critérios ilícitos ou injustos, e a diferenciação de preços sempre deve vir acompanhada de políticas efetivas de transparência e da devida prestação de contas, de modo que consumidores tenham condição de compreender as razões da diferenciação e, se dela discordarem, inclusive procurar o serviço de plataformas concorrentes. O CDC, bem como o Marco Civil da Internet e a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), são bem-dotados de institutos e mecanismos eficazes e necessários para garantir os direitos de usuários nesse contexto.

No entanto, a proteção ao consumidor não deve servir de justificativa a uma interpretação do Direito que crie um ambiente institucional inóspito a novos modelos de negócio, em especial quando apresentam o potencial de produzir um mercado mais eficiente e mais inclusivo.

Victor Doering Xavier da Silveira e Alexandre Pacheco da Silva são, respectivamente, pesquisador do Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação da FGV Direito SP, mestre e bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e doutorando em Direito pela mesma instituição; e coordenador do Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação e professor da FGV Direito SP, doutor em Política Científica e Tecnológica pela Unicamp, mestre em Direito e Desenvolvimento pela FGV Direito SP e bacharel em Direito pela mesma instituição.

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