O Globo, n. 32650, 28/12/2022. Mundo, p. 17

'Caça às bruxas'

Amanda Scatolini


Acusadas de praticar feitiçaria em um vilarejo em Borno, no Nordeste da Nigéria, 26 mulheres foram assassinadas em novembro deste ano pelo Boko Haram, após a morte súbita de um dos filhos do líder do grupo jihadista. O caso de "caça às bruxas" moderno não foi um fato isolado, tampouco exclusivo do país, uma vez que mulheres ainda são perseguidas e mortas sob acusações do tipo em outros lugares da África, como também no Sudeste Asiático e na América Latina.

O último relatório das Nações Unidas (ONU) sobre feminicídio, intitulado "Assassinatos de mulheres e meninas relacionados ao gênero" e lançado em 24 de novembro, cita casos associados a acusações de bruxaria. No entanto, o documento — que relata mais de 81 mil feminicídios no mundo em 2021, mais de 50% deles cometidos pelo marido ou outros parentes — não traz muitos detalhes sobre a parcela de vítimas mortas sob tais alegações.

O motivo da ausência de dados quantitativos sobre esses casos é a dificuldade de monitorá-los e contabilizá-los, uma vez que muitos ocorrem em territórios de difícil acesso e sem registros oficiais, como já havia sido enfatizado pela Agência de Refugiados da ONU (Acnur) no relatório "Alegações de bruxaria, proteção de refugiados e direitos humanos", de 2009. Uma resolução do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas de 2021, que pede a eliminação de práticas nocivas relacionadas a acusações de feitiçaria, entretanto, cita cerca de 22 mil vítimas na última década, embora o número possa estar subnotificado.

Ocorrências do tipo já foram registradas em 50 países até hoje, aponta a ONU. Na Tanzânia, mais de mil pessoas morrem anualmente por esse motivo, sendo a maioria mulheres. Na Índia, a polícia registrou, entre 2000 e 2016, 2.500 assassinatos de mulheres suspeitas de praticar bruxaria, numa média de pouco mais de 156 casos por ano — em 2020, houve uma queda, com 120 registros no total. Também são destacados países como República Democrática do Congo (RDC), Angola, Nigéria, Zimbábue, Gana, Quênia, Papua Nova Guiné, entre outros onde há indicações de que os episódios são frequentes, mas com falta de dados precisos.

O fenômeno de perseguição a supostas bruxas se estende também à América Latina. No Peru, sete mulheres foram açoitadas sob tal acusação em junho deste ano por uma patrulha paramilitar camponesa em uma região dos Andes. Já no Brasil, há o emblemático caso de Fabiane Maria de Jesus, linchada no Guarujá, litoral paulista, em 2014. Alvo de uma campanha de desinformação que alegava que ela praticava rituais de magia negra envolvendo crianças, Fabiane foi espancada até a morte por cerca de 100 moradores.

A ONU também cita outros países onde tal prática é frequente e, muitas vezes, enraizada na sociedade. Na Arábia Saudita, há leis que proíbem a prática da bruxaria, um crime que pode levar à pena de morte. Para cuidar desses casos, há uma "unidade antibruxaria" no departamento federal de polícia religiosa desde 2009.

As vítimas, muitas vezes, são mulheres de idade avançada, recém-divorciadas ou viúvas. Vistas como membros mais vulneráveis da sociedade, tornam-se alvos mais fáceis por sua incapacidade e falta de conhecimento para contestar as acusações.

Os motivos das denúncias de supostos atos de bruxaria também podem variar consideravelmente de uma região para outra: o nascimento de uma criança com deficiência, a morte ou adoecimento de algum familiar, vingança pessoal, superstição, disputas sobre propriedades ou simplesmente um infortúnio na comunidade em que vivem. Qualquer desvio de comportamento considerado suspeito pode levar a uma denúncia e, consequentemente, a um julgamento.

Gana e os acampamentos de bruxas

Em Gana, na África Ocidental, mulheres suspeitas de praticar bruxaria são banidas da sociedade e praticamente forçadas a se exilar em assentamentos afastados das comunidades, sob condições precárias de vida e sem acesso a atendimento básico de saúde.

São seis campos espalhados pelo Norte do país, conta o ativista nigeriano Leo Igwe, fundador do projeto Defesa para Supostas Bruxas (AfAW, na sigla em inglês), que já visitou alguns deles.

— Fiquei traumatizado com suas histórias. Conheci uma mulher acusada de matar a filha, que adoeceu, por meio de bruxaria — relata Igwe ao GLOBO. — A mulher foi banida, apedrejada, rejeitada por seus familiares e teve de ir para um desses acampamentos. Ao relatar sua história, ela começou a chorar incontrolavelmente. Ela me disse: "Como eu poderia matar minha própria filha? Eu a criei e a amamentei."

A mulher, conta o ativista, morreu alguns meses mais tarde devido às péssimas condições de vida no assentamento.

Estima-se que mais de mil mulheres se abrigam nesses campos espalhados pelo país atualmente, embora o governo já tenha tentado fechá-los para pôr um fim às perseguições. Organizações da sociedade civil há muito pressionam os governantes para aprovar uma lei que criminalize a acusação de bruxaria no país, ainda sem sucesso.

Para ele, a "perseguição às bruxas na África não recebe a atenção que merece", sendo tratada frequentemente como algo inerente ao povo africano, e não como um "fenômeno selvagem e destrutivo que causa estragos na vida das pessoas em toda a região".

Igwe também cita a interferência de grupos missionários cristãos em muitas regiões onde o projeto atua, que contribuem para fomentar as denúncias, pondo em risco a vida de mais pessoas, além da tentativa de evangelizar povos e adequá-los à cultura ocidental.

— Os pastores cristãos são os caçadores de bruxas modernos. A fé cristã é patriarcal e santifica a misoginia — diz ele.

Com atuação majoritária na Nigéria, Zimbábue, Zâmbia, Libéria, Gana, Quênia e Malawi, a AfAW foi criada pelo ativista com o objetivo de apoiar as acusadas, facilitando o acesso delas à Justiça e auxiliando na realocação e reabilitação dessas mulheres na sociedade. Os obstáculos, ele cita, incluem a falta de recursos para financiar as campanhas de intervenção e a atuação dos governos na criação de leis que recriminem tais atos. Igwe defende que é preciso educar o público local para que essas perseguições cessem, mostrando os equívocos que impulsionam as acusações de bruxaria, com uma meta de atingir esse objetivo até 2030.

Na visão de Ivanir dos Santos, professor do Programa de Pós-Graduação em História Comparada da UFRJ, o fenômeno de perseguição tende a se ampliar cada vez mais com a expansão do cristianismo, de grupos neopentecostais e do islamismo na África.

— Por que alguém é chamada de bruxa? Talvez por ter conhecimento da medicina não tradicional, por saber lidar com as coisas da natureza. São práticas tradicionais de vários povos, mas que são desqualificadas na visão ocidental. Não é algo diferente do que acontece aqui no Brasil, em comunidades indígenas, como o número de pajés que são perseguidos e mortos por conta da incompreensão religiosa e tudo aquilo que não tem a ver com a sociedade ocidental — observa o professor.