O Globo, n. 32643, 21/12/2022. Política, p. 4

Rateio do orçamento secreto

Geralda Doca
Manoel Ventura


No dia seguinte em que o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou a extinção do orçamento secreto, governo eleito e a cúpula do Congresso costuraram um acordo para definir onde alocar, no Orçamento de 2023, os R$19,4 bilhões que estavam sob a rubricadas “emendas de relator ”, consideradas inconstitucionais pelo tribunal. O arranjo, embutido na PEC da Transição votada ontem pela Câmara, gerou um rateio que ao mesmo tempo garante aos parlamentares uma supercota nas emendas individuais — maior mesmo que adotação de vários órgãos importantes da administração federal— e abre brecha para que o futuro Palácio do Planalto e o comando do Parlamento reciclem o esquema de barganha política através de recursos do Executivo enterrado pelo STF.

Os R$ 19,4 bilhões previstos na rubrica das emendas de relator foram divididos em duas partes iguais. Metade do valor (R$ 9,7 bilhões) foi incorporada às emendas individuais, modelo no qual cada deputado e cada senador tem direito a indicar a destinação de um mesmo montante de recursos do Executivo. Além disso, essas emendas são de execução obrigatória, ou seja, o governo não pode pagar ou deixar de pagar de acordo com um maior ou menor alinhamento do parlamentar nas votações.

A outra metade, segundo relataram parlamentares logo após a articulação ter sido selada, ficaria para o governo decidir como gastar. O texto da PEC submetido ao plenário da Câmara na noite de ontem, porém, trouxe um formato que abre brecha para que os deputados e senadores possam destinar os recursos sem serem identificados, reciclando o modelo que o Supremo considerou ilegal.

Segundo a PEC, a destinação do montante que cabe ao Executivo será indicada pelo relator-geral do Orçamento, no caso, o senador Marcelo Castro (MDB-PI). Na prática, sem uma exigência de que os recursos sejam indicados igualitariamente por parlamentares e sem que o Executivo seja obrigado apagá-lo, fica aberto o caminho para o governo usá-los em negociações políticas com o Congresso.

Por um lado, se tiver o aval do Executivo, um parlamentar poderá destinar parte desse dinheiro para programas do governo que beneficiem sua base eleitoral, sem ser identificado, já que formalmente a destinação aparecerá como uma medida do relator-geral. Por outro, sem execução obrigatória, o governo pode abrir e fechar a torneira de pagamento de acordo com a fidelidade dos parlamentares.

O relator-geral, Marcelo Castro, afirmou que, pelo acordo feito, a destinação desses R $9,7 bilhões será prerrogativa exclusiva do futuro governo, sem indicação de parlamentares. Sob reserva, porém, deputados que participaram das reuniões com aliados de Lula afirmaram ao GLOBO que o artigo foi inserido como parte das negociações para a aprovação da PEC, de modo a garantir, com aval do novo governo, a influência Congresso sobre o Orçamento.

Orçamento individual

O acordo sobre a divisão dos recursos das emendas de relator para destravar a tramitação da PEC da Transição foi costurado em reunião entre o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), o futuro ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e diversos parlamentares. A tramitação da PEC foi discutida entre Lira e o Presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).

A primeira metade do arranjo turbinará de forma expressiva as emendas individuais, cuja previsão inicial era de R$ 11,7 bilhões, divididos igualmente entre os 594 senadores e deputados (R$ 19,7 milhões para cada um). Os R$ 9,7 bilhões “herdados” das emendas de relatos serão divididos na proporção dois para um entre Câmara e Senado. Na conta final, cada senador terá direito a indicar a destinação de R$59 milhões do Orçamento; e cada deputado, R$ 32 milhões.

Com o “reforço”, cada parlamentar terá mais recursos que diversos órgãos federais, considerando apenas o orçamento livre (sem contar gastos com pessoal), de acordo coma proposta do Orçamento 2023. O dinheiro por parlamentar é maior, por exemplo, que o orçamento livre do Serviço Florestal Brasileiro (R$ 27 milhões), da Comissão de Valores Mobiliários (R$ 25 milhões), e da Casa de Rui Barbosa (R$ 6,8 milhões).

As emendas individuais são de execução obrigatória, ou seja, o governo é obrigado a alocar o recurso onde o congressista indicar. Normalmente, os parlamentares enviam os recursos para suas bases eleitorais por meio de obras e serviços. Metade dos valores precisa ser destinada para a saúde.