Valor Econômico, n. 4922, 18/01/2020. Internacional, p. A10-A11

Davos vai propor um novo capitalismo
Daniel Rittner


O Fórum Econômico Mundial começa hoje sua 50ª reunião anual, no pacato resort alpino de Davos, tentando colocar em prática uma cartilha lançada meio século atrás por seu fundador, Klaus Schwab, para guiar as práticas corporativas. Agora, diz o alemão de 81 anos e sotaque carregado, a hora de colher uma reforma do capitalismo finalmente chegou. Tanto que ele lançou o “Manifesto de Davos 2020” para atualizar conceitos pensados originalmente em 1971.

Nunca foi tão urgente, segundo Schwab, dar significado concreto à ideia de um “capitalismo das partes interessadas” (stakeholder capitalism) no lugar de outros dois modelos em voga nas últimas décadas. O “capitalismo de acionistas” teve seu momento de esplendor enquanto centenas de milhões de pessoas prosperavam, tinham acesso a bens de consumo inéditos, empresas abriam novos mercados e empregos eram criados.

Só que esse modelo não é mais sustentável, avalia o fundador do Fórum, que dá as razões. “Primeiro veio o efeito Greta Thunberg: ela nos recordou que o sistema econômico atual constitui uma traição às gerações futura pelo dano ambiental que provoca. Em segundo lugar, os ‘millenials’ e a ‘geração Z’ já não querem trabalhar, investir ou comprar em empresas que não atuem com base em valores mais amplos. Por último, cada vez mais os executivos e investidores compreendem que o sucesso deles no longo prazo também depende do êxito de seus clientes, empregados e fornecedores”, afirma Schwab.

Já o “capitalismo de Estado” pode ter colhido bons resultados e cumpriu um papel no desenvolvimento de alguns países, sobretudo na Ásia, mas precisa evoluir para não se corromper, segundo ele.

O novo manifesto estabelece premissas: pagamento justo de impostos, tolerância zero com a corrupção, proteção do meio ambiente para futuras gerações, estímulo à qualificação dos empregados, uso ético das informações privadas na era digital, vigilância dos direitos humanos em toda a cadeia de fornecedores, remuneração responsável dos executivos.

Em um ensaio de construção desse novo capitalismo, dezenas de empresários e banqueiros que estão subindo a “montanha mágica” de Davos receberam, no fim da semana passada, carta assinada por Schwab - tendo como coautores os presidentes do Bank of America e da gigante holandesa Royal DSM - com uma proposta de compromisso: que suas companhias zerem as emissões líquidas de gases do efeito estufa, tornando-se “carbono neutras”, até 2050.

As questões ambientais, inclusive, estão transformando a atual edição no que muitos chamam de “Davos verde”. Serão 51 painéis de discussão sobre ecologia, desenvolvimento sustentável e mudanças climáticas - contra 50 de geopolítica e 27 específicas de economia. Uma iniciativa coordenada pelo Fórum promete o plantio de um trilhão de árvores, até 2030, contra o aquecimento global.

Sem nenhum representante do governo brasileiro, uma sessão na quarta-feira intitulada “Assegurando um Futuro Sustentável para a Amazônia” terá no palco o climatologista Carlos Nobre, crítico das políticas ambientais de Jair Bolsonaro. O ex-vice americano Al Gore também integra essa discussão.

‘Desigualdade global está fora de controle’

Um grupo de apenas 2.153 indivíduos no mundo com patrimônio superior a US$ 1 bilhão detém mais riqueza do que 4,6 bilhões de pessoas, o equivalente a 60% da população global, conforme indica um novo levantamento da rede de organizações não-governamentais Oxfam. O estudo chega à conclusão de que o número de bilionários dobrou na última década e a desigualdade econômica está fora de controle.

“Os 22 homens mais ricos do mundo detêm mais riqueza do que todas as mulheres da África”, compara a Oxfam no relatório, lançado horas antes da abertura do Fórum Econômico Mundial, em Davos. Para ilustrar o “grande fosso” de renda, há uma ilustração: se alguém tivesse juntado US$ 10 mil por dia desde que as pirâmides do Egito começaram a ser construídas, teria hoje só um quinto da fortuna média dos cinco maiores bilionários do planeta. Enquanto isso, quase metade da população global sobrevive com menos de US$ 5,50 por dia.

O estudo renova as discussões sobre concentração de renda e desigualdade, que estiveram no topo da agenda durante todo o ano passado, com manifestações espalhadas pela América Latina, além de protestos na França e no Líbano. Muitos atos, como no Chile, desaguaram em crise política.

Especulações em torno da tributação das fortunas brotam do diagnóstico. No período entre 2011 e 2017, os salários médios nos países do G-7 tiveram alta de 3%. Já os dividendos para acionistas cresceram 31%. De acordo com o levantamento, apenas 4% das receitas tributárias globais provêm da taxação de fortunas e os “superricos” conseguem evitar até 30% de imposto por meio de evasão fiscal.

O novo relatório da Oxfam propõe ainda olhar as questões de gênero como um dos combustíveis, segundo as palavras dos autores, que alimentam essa engrenagem: as mulheres fazem mais de 75% de todo trabalho de cuidado não remunerado do planeta. Frequentemente elas trabalham menos horas em seus empregos ou têm que abandoná-los por causa da incompatibilidade horária com o cuidado. Em todo o mundo, 42% das mulheres não conseguem um emprego porque são responsáveis por todo o trabalho de cuidado - entre os homens, essa proporção é de 6%.

“Milhões de mulheres e meninas passam boa parte de suas vidas fazendo trabalho doméstico e de cuidado, sem remuneração e sem acesso a serviços públicos que possam ajudá-las nessas tarefas tão importantes”, diz a diretora-executiva da Oxfam Brasil, Katia Maia.

Quase simultaneamente à divulgação da rede de ONGs, o Fórum Econômico Mundial também publicou um estudo sobre mobilidade social que projeta ganho de até 4,4% no PIB global caso as economias dessem oportunidades iguais a seus cidadãos.

A lista dos dez países com maior mobilidade social no mundo é preenchida somente por europeus: Dinamarca, Noruega, Finlândia, Suécia, Islândia, Holanda, Suíça, Áustria, Bélgica e Luxemburgo. Os Estados Unidos aparecem em 27º lugar.

O Brasil ocupa a 60ª posição entre 82 nações e está no meio dos Brics. Os outros são Rússia (39ª), China (45ª), Índia (76ª) e África do Sul (77ª). Quatro aspectos foram analisados: salários, sistema de proteção social, condições de trabalho e educação continuada. Curiosamente, o Chile - palco das maiores manifestações na América Latina - é o mais bem posicionado da região: 47º lugar.