Valor Econômico, v. 20, n. 4847 28/09/2019. Brasil, p. A6


‘Crescimentismo precisa dar lugar a igualitarismo'

Entrevistado: Marcelo Medeiros 


 

Um dos principais estudiosos da desigualdade social do país, o sociólogo e economista Marcelo Medeiros afirma que a estratégia de desenvolvimento a partir do crescimento econômico chegou a um limite, que é o ambiente. Para ele, este modelo, que chama de “crescimentismo”, precisa dar lugar para o “igualitarismo”.

“O Brasil tem gente que acusa os outros de terraplanistas porque não se preocupam com o futuro da Previdência, mas faz a mesma coisa quando o assunto é conservação ambiental”, afirma Medeiros, para quem a parcela mais rica da população é responsável por uma parte grande da crise climática, uma vez que concentra também a maior parte do consumo.

Professor visitante da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, Medeiros desenvolveu estudos nos últimos anos que mudaram a compreensão da trajetória da desigualdade no Brasil. Com base em dados da Receita Federal, ele mostrou que a melhor distribuição da renda do trabalho foi compensada pelo rendimento de capital da parcela mais rica da população.

No início deste ano, ele precisou deixar o país por motivos de segurança, após sua família sofrer ameaças de grupos de extrema direita. Ele é casado com a antropóloga Débora Diniz, professora de direito e defensora dos direitos das mulheres, uma das principais ativistas pela discriminalização do aborto. “O ódio está sendo deliberadamente usado como  ferramenta política. Nossa saída do Brasil é resultado da política do ódio”, diz Medeiros.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista.

Valor: As queimadas na Amazônia mobilizaram a opinião pública no mundo. Como isso nos afeta?

Marcelo Medeiros: Isso é muito, mas muito mais importante do que as pessoas imaginam. Desenvolvimento não é seguir o caminho que os outros seguiram no passado. Desenvolvimento não é um sinônimo rasteiro de crescimento. Por sinal, existe um limite para o crescimento, um limite ambiental. Nós já estamos em uma crise climática, lenta, mas crescente. O esforço agora tem que ser revertê-la. É impossível que a metade mais pobre do mundo alcance o 1% mais rico pela via do crescimento. Até mesmo a renda dos 10% mais ricos já seria arriscado demais. O planeta simplesmente não aguenta.

Valor: E qual a conexão com a desigualdade?

Medeiros: Nossa estratégia de desenvolvimento no último século foi uma estratégia de crescimento. Podemos chamar essa forma de desenvolvimento de “crescimentismo”. Isso chegou ao limite. No ponto em que estamos, a base do desenvolvimento daqui em diante tem que ser cada vez mais igualdade. O “crescimentismo” terá que ceder lugar para o igualitarismo, se o desenvolvimento com um mínimo de justiça for levado a sério. Conclusão, aliás, que vale para a desigualdade dentro dos países e também para a entre países. Isso não vai acontecer da noite para o dia, mas tem que acontecer, porque crescer aceleradamente não é mais uma alternativa.

Valor: Então não estamos diante de uma emergência, mas de um problema de longo prazo?

Medeiros: É um problema cumulativo. O que for feito agora comprometerá o longo prazo. Isso vem sendo dito há décadas, mas há quem prefira não levar a sério. Incrível é que há até economistas que ignoram que recursos são escassos. No Brasil tem gente que acusa os outros de terraplanistas porque não se preocupam com o futuro da Previdência, mas  faz a mesma coisa quando o assunto é conservação ambiental. Veja bem, é inconsistente: precisa de ajuste fiscal, porque os recursos são inexoravelmente escassos, mas não precisa de ajuste ambiental porque os recursos não são sempre escassos, vai cair maná do céu e esse problema será resolvido. O “crescimentismo” é apenas uma forma intelectualizada de negacionismo climático.

Valor: A tecnologia pode contribuir para mitigar isso?

Medeiros: A aposta apenas na tecnologia é uma aposta ingênua. Nos padrões de mudança tecnológica que tivemos nos últimos cem anos, nenhuma tecnologia seria suficiente para reduzir radicalmente o consumo mundial de água e carbono nas próximas duas ou três décadas, por exemplo. E não temos esse tempo todo, muito do que está acontecendo agora já é irreversível. A tecnologia pode nos ajudar, mas é preciso mais do que tecnologia, é preciso reduzir consumo. A renda está concentrada entre os mais ricos e, por isso, o consumo também. Os mais ricos do mundo são responsáveis por uma parte grande da crise climática em que entramos.

Valor: Então, é um problema de desigualdade entre os ricos e o resto...

Medeiros: Há duas desigualdades importantes em jogo. A primeira é a que existe entre os ricos do mundo e os outros bilhões de pessoas. O planeta é uma propriedade coletiva. Os ganhos dos ricos são privados, mas os danos são coletivos. Moralmente, é justo e correto exigir de todos uma redução progressiva do consumo, o comprometimento dos ricos tem ser bem maior do que o dos pobres. Mas há uma segunda desigualdade relevante: a desigualdade entre gerações. A crise é lenta, mas sem mudanças radicais, será inevitável. O pesado da conta da crise ambiental será pago por quem é criança atualmente. Portanto, também é um conflito distributivo entre jovens e velhos. Não é sem razão que a preocupação ambiental é muito maior entre jovens. O que é de uma maturidade impressionante. Eles são os filhos dos adultos que acham que está tudo sob controle porque uma solução vai cair do céu.

Valor: É comum ouvirmos que o problema não é a desigualdade em si, mas sim a pobreza.

Medeiros: Olha, a desigualdade pode não ser problema, mas igualdade é a solução. Uma das formas de se reduzir a pobreza é redistribuição. Portanto, quem se preocupa com pobreza tem de se preocupar com igualdade. A pobreza, aliás, é uma forma de desigualdade, a desigualdade entre os pobres e o resto. Logo, é melhor deixar essa filosofia de segunda classe de lado. Desigualdade entre homens e mulheres não é relevante, porque não é pobreza? Racismo não é relevante? Quem tem um mínimo de preocupação com justiça tem que levar esses assuntos a sério.

Valor: Tem se falado sobre fuga de cérebros. O que o levou a Princeton?

Medeiros: A segurança da minha família. Sou casado com uma defensora de direitos humanos e, pelo trabalho dela, sofremos uma série de ameaças de morte. Por trás delas estão grupos de extrema-direita. Vivemos meses sob proteção policial, até o ponto em que nos disseram que era mais seguro sair. Isso tudo é resultado de uma incitação ao extremismo  combinada a um ar de permissividade com a violência. O ódio está sendo deliberadamente usado como ferramenta política, nossa saída do Brasil é resultado da política do ódio. Queremos voltar, mas não há condições para isso.