Valor Econômico, v.20, n. 4917, 13/01/2020. Legislação & Tributos p.E2

 

Carta branca à multa aduaneira


O tribunal administrativo chancelou a aplicação indiscriminada de uma das penalidades mais severas previstas na legislação brasileira

Marcelle Silbiger

Telírio Saraiva

Recentemente assistimos com grande expectativa às tratativas para assinatura de acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia, com o Brasil liderando os debates sobre o tema. O assunto é dos mais relevantes. Dificilmente teremos verdadeiro êxito econômico sem uma maior presença no comércio exterior, sendo crucial a adoção de políticas efetivas para a atração de capitais estrangeiros e fomento das exportações.

Em setembro de 2019, o Carf aprovou súmula que depõe contra esse urgente racional de maior abertura econômica. A Súmula 160 faz referência a dispositivo legal que trata de infrações aduaneiras puníveis com o perdimento das mercadorias. Essa sanção é substituída por multa equivalente ao valor aduaneiro da mercadoria nos casos em que os produtos já tenham sido revendidos, consumidos ou não possam ser localizados.

A Receita Federal tem feito largo uso dessa multa, independentemente da comprovação de efetivo dano ao erário ou aos controles aduaneiros. Não são raros os casos em que o contribuinte é acusado de interpor fraudulentamente terceiro a fim de ocultar o real adquirente das mercadorias, sendo autuado pela mera discordância das autoridades fiscais quanto à modalidade de importação - se indireta ou direta - ou quanto ao modelo de negócios adotado em operações de exportação.

Infelizmente essa prática danosa às empresas foi chancelada pela Súmula 160, ao afastar a necessidade de comprovação do dano ao erário para aplicação da multa aduaneira.

Especificamente em relação à acusação de interposição fraudulenta, das mais citadas pela Receita Federal, é preciso ter em conta que a origem da aplicação da multa nesse caso surgiu no contexto de combate às fraudes no comércio exterior como sanção àqueles que buscam ocultar-se do controle aduaneiro para a prática de atos ilícitos.

Nessas situações é imperativo não só a comprovação do intuito doloso do agente - salvo raríssimas exceções, como nos casos em que se desconhece a origem dos recursos empregados na operação -, mas também essencial que se ateste o dano ao erário. Isso porque a aplicação da multa deve ter correspondência com o potencial lesivo da conduta que se busca punir. Como exemplo, não seria justo penalizar um importador de medicamentos com a mesma sanção dirigida a quem se vale do comércio exterior para a lavagem de capitais ou contrabando.

Ademais, a máxima elegida pelo Carf conduz à perigosa constatação de que as hipóteses de dano ao erário previstas no Decreto-lei 1.455/1976 deveriam ser entendidas como presunções absolutas, posicionamento altamente questionável. A pena substitutiva ao perdimento equivale a sanção severa, pois corresponde ao próprio valor aduaneiro ou preço das mercadorias comercializadas. Por essa razão, as hipóteses do Decreto-lei deveriam ser consideradas presunções relativas, cujo exame, vale reiterar, deve estar condicionado à verificação concreta da potencialidade do dano.

A esse respeito, o Carf proferiu decisão unânime e favorável à empresa exportadora de commodities acusada de interpor fraudulentamente filial no exterior em operações de exportação triangulares (Acórdão 3201¬005.152). Dentre os diversos elementos que fundamentaram a decisão, destacou-se a impossibilidade de aplicação da pena de perdimento, uma vez que há necessidade de que o “potencial de dano seja minimamente verossímil”, como ocorreria no caso de exportações proibidas, a exemplo daquelas que seguem as sanções impostas pelo Conselho de Segurança da ONU. No mesmo sentido, no âmbito do STJ existem precedentes que afastam a pena de perdimento em razão da desproporcionalidade da sanção frente ao potencial lesivo das infrações (e.g. Recurso Especial n. 1.417.738/PE).

Também merece destaque o fato de a Súmula 160 consignar a manutenção da multa independentemente “da comprovação de prejuízo ao recolhimento de tributos ou contribuições”. Curiosamente, porém, vemos aos montes autos de infração com a aplicação da multa substitutiva sendo fundamentados por razões puramente tributárias, tais como casos envolvendo a suposta “quebra da cadeia do IPI”, não recolhimento do PIS e da Cofins, infração a regras de preços de transferência etc.

Ora, se a aplicação da penalidade independe da comprovação de prejuízo no recolhimento de tributos, logo, pelo teor da própria súmula, o não recolhimento de tributos não pode ser utilizado como fundamento para o emprego da multa. A súmula sacramenta o óbvio: a multa substitutiva tem como escopo punir infração não tributária. Se eventualmente tributos deixaram de ser recolhidos, devem ser observadas as normas específicas aptas a sancionar esse tipo de conduta, sendo absolutamente incabível a aplicação de penalidade aduaneira para este fim.

Ao aprovar a súmula em questão, o tribunal administrativo chancela a aplicação indiscriminada de uma das penalidades mais severas previstas na legislação brasileira, figurando como fator adicional de insegurança jurídica para o ambiente de negócios brasileiro.