Valor Econômico, v. 20, n. 4814, 14/08/2019. Legislação e Tributos, p. E2

A nova era dos litígios internacionais

Nadia de Araujo
Marcelo de Nardi
Lidia Spitz


 

No último dia 2 de julho, a Conferência da Haia de Direito Internacional Privado concluiu os trabalhos de sua 22ª Sessão Diplomática, tendo sido adotada a "Convenção sobre o Reconhecimento e Execução de Sentenças Estrangeiras em Matéria Civil ou Comercial". Trata-se de um extraordinário marco legislativo que inaugura um sistema global uniforme regendo a circulação de decisões judiciais, desenhado para facilitar o efetivo acesso à Justiça por aqueles envolvidos em litígios internacionais.

Uma disputa de caráter internacional é a que está de alguma forma conectada a mais de um Estado. É o que ocorre, por exemplo, quando as partes envolvidas na demanda têm sua residência, sede ou estabelecimento em diferentes países. Em algumas situações, o elemento que confere internacionalidade ao conflito está associado ao local de cumprimento da obrigação pactuada, ou então ao lugar em que o dano foi cometido, dentre outras possibilidades.

Mesmo quando uma parte envolvida em um litígio internacional é vencedora da disputa, e tem uma sentença favorável em mãos, isso não significa que receberá o que lhe foi assegurado pela via judicial imediatamente. Em muitos casos é necessário que a execução da sentença seja realizada em outro Estado, onde a parte perdedora da ação possui bens suficientes para pagar pelo que foi condenada.

A circulação de uma decisão judicial de um Estado para outro não é um procedimento simples e previsível. Cada Estado mantém regras próprias regulando o reconhecimento e a execução de uma sentença estrangeira, e essas regras variam em larga medida entre si.

Do ponto de vista da parte vitoriosa da ação judicial, a tomada de decisão quanto ao Estado em que ajuizará a ação de reconhecimento da sentença é algo que envolve elevado custo, pois requer assessoria jurídica especializada em diferentes países, e uma alta dose de incerteza. Além do mais, o processo em si de reconhecimento e execução de uma sentença judicial estrangeira consubstancia uma nova etapa judicial, difícil de ser compreendida e manejada por aqueles que não estão familiarizados com o sistema jurídico do Estado acionado.

A Convenção de Sentenças vem justamente descomplicar essa miríade de legislações sobre o reconhecimento e execução de sentenças estrangeiras, mediante a fixação de uma regulamentação uniforme.

O seu propósito maior é facilitar o efetivo acesso à justiça, em sua dimensão global, a partir do fortalecimento da cooperação jurídica entre os Judiciários dos Estados. A ideia é que os países partilhem de uma base legal comum sobre os requisitos para reconhecimento e execução de sentenças judiciais estrangeiras, de modo que as partes envolvidas em litígios internacionais de natureza civil ou comercial se beneficiem de maior certeza, previsibilidade e segurança quanto aos efeitos de uma sentença judicial em foro diverso daquele em que foi emitida. A nova regulamentação visa, portanto, facilitar o comércio internacional e simplificar outras relações civis internacionais, assegurando um arcabouço legal favorável à circulação entre os Estados-parte das sentenças a eles referida.

A Convenção de Sentenças é fruto de uma complexa negociação que se estendeu na Conferência da Haia desde 1992. A expectativa é que seja ratificada por um número expressivo de países e tenha o mesmo significado para circulação de decisões judiciais que a Convenção sobre o Reconhecimento e a Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras, a "Convenção de Nova Iorque", teve para os laudos arbitrais.

A força da arbitragem como via escolhida para a solução de disputas de caráter internacional decorre em larga medida do fato de que as regras para a circulação dos laudos arbitrais são uniformes e facilitadas pela Convenção de Nova Iorque.

O Brasil foi protagonista nas discussões e teve decisiva participação nas negociações da Convenção de Sentenças. O formato final do texto é compatível com o nosso ordenamento jurídico, e a sua ratificação deve ser analisada com máxima consideração pelas autoridades competentes. Do ponto de vista passivo, a legislação brasileira atual é extremamente favorável ao reconhecimento (à homologação) e execução de sentenças provenientes do exterior, de modo que as regras uniformes do novo instrumento convencional devem gerar pouco impacto na posição aberta e favorável consagrada pelo Superior Tribunal de Justiça.

Do ponto de vista ativo, todavia, a Convenção de Sentenças deve facilitar a circulação de decisões emanadas do Judiciário nacional para outros Estados, o que é algo extremamente benéfico ao jurisdicionado brasileiro.

A recente conclusão da Convenção de Sentenças preenche um vácuo legislativo fundamental em matéria de direito internacional, e representa a possibilidade de que as sentenças judiciais circulem de um Estado a outro com maior facilidade e segurança jurídica. O desafio agora é promover a sua ratificação por um número considerável de países, e torná-la um instrumento efetivo para o que se propõe a ser.