Valor Econômico, v. 20, n. 4884, 21/11/2019. Opinião, p. A18

Desigualdade e (im)potência da política monetária
Maurício Molan


São conhecidos os principais mecanismos de transmissão da política monetária, ou seja, as maneiras pelas quais mudanças na taxa básica de juros afetam a atividade econômica e a inflação. É amplamente sabido também que a substancial redução da Selic, de 14,25% ao ano em 2016 para os 5% ao ano atuais, falhou em impulsionar a demanda doméstica conforme se poderia esperar. O que há de errado com a política monetária?

Muitas forças atuaram, nos últimos anos, de forma a contribuir para frustrar as projeções de crescimento do PIB brasileiro. Uma delas é o próprio processo de consolidação fiscal em curso no país. Além da contenção de gastos, a reorganização das contas públicas passa também pelo desmantelamento de toda uma estrutura de subsídios cruzados, altamente ineficientes, com destaque para a drástica mudança na forma de atuação do BNDES. Ainda que fundamental para reduzir o risco de insolvência do setor público, não dá para negar que esse processo de ajuste tem sido antagônico ao crescimento da demanda doméstica no curtíssimo prazo.

Outro relevante vetor de repressão ao consumo e aos investimentos no Brasil tem sido a modesta expansão do PIB mundial. O temor de uma estagnação secular se justifica pela percepção de que a fragilidade que observamos atualmente não se deve apenas a fatores conjunturais, mas também a importantes aspectos estruturais como: 1) Desaceleração da produtividade global, 2) Envelhecimento da população e 3) Mudança do modelo de crescimento chinês.

Ainda que o ajuste fiscal e o crescimento global justifiquem parte da frustração em relação às projeções de crescimento do PIB no Brasil, é possível perceber que alguns dos canais de transmissão da política monetária estão obstruídos. Vejamos:

A redução dos juros parece ter afetado, em alguma medida, a taxa de câmbio. Mas o impulso teórico adicional, via ganho de competitividade, que o enfraquecimento do real deveria gerar sobre as vendas e compras externas de bens e serviços, provavelmente foi mais do que compensado pela crise na Argentina e pela forte redução do comércio global (que se deve a fatores potencialmente cíclicos como a guerra comercial entre Estados Unidos e China, e outros de característica permanente, como os mencionados no parágrafo anterior). De fato, os dados do IBGE mostram que a contribuição das exportações líquidas para o PIB tem permanecido praticamente inalterada nos últimos anos.

O canal da confiança também não dá sinais claros de funcionar em sua plenitude. Se existe, de um lado, a força favorável da redução dos juros sobre as expectativas, não dá para negar que as recorrentes crises políticas e o conflituoso ambiente que predomina em Brasília contribuem para consolidar um clima de incerteza em relação à economia. As incertezas oriundas de um ambiente geopolítico

O crédito é um canal promissor. Os dados agregados mostram que as pessoas físicas e jurídicas reduziram bastante sua alavancagem nos últimos anos. Dados da OCDE mostram que o indicador de endividamento das famílias como proporção da renda anual disponível, por exemplo, está em 55% no Brasil, ainda longe do observado em economias como China (92%), Estados Unidos (109%) ou a campeã Dinamarca (280%). É natural, portanto, esperar por um novo ciclo de expansão do crédito, com ênfase no mercado imobiliário ao longo dos próximos anos.

Mas mesmo esse mecanismo não está livre de algum grau de obstrução. As taxas praticadas na ponta final para os consumidores ainda são muito elevadas no Brasil. O comportamento da carga de pagamento de juros ao sistema financeiro, por parte dos indivíduos, é uma forma de ilustrar esse ponto. Segundo as estimativas do Banco Central, o custo implícito do endividamento esteve, em média, perto de 22% a.a. nos últimos 12 meses até agosto, não muito distante dos 23%, no mesmo período terminado em agosto de 2018.

Isso sem contar que, taxas de retorno sobre o patrimônio guardado para a aposentadoria, percebidas como permanentemente mais baixas, podem estar levando alguns segmentos da população a poupar mais, ao invés de consumir mais, no presente, o que contraria as intenções dos formuladores de política econômica.

Por fim, o efeito riqueza está bastante evidente na exuberante performance dos investimentos financeiros ao longo de 2019. Ao se perceberem mais ricas, as pessoas, teoricamente, deveriam gastar mais. O empecilho aqui pode ser a desigualdade predominante no país. É possível que a redução de juros, pelo menos até o momento, tenha beneficiado desproporcionalmente mais, o topo da pirâmide, onde se encontra a quase totalidade dos detentores de ativos financeiros. Se a propensão a consumir da classe média-baixa, for maior do que a das classes altas, um aumento de renda concentrado no topo da pirâmide impactaria muito pouco o consumo agregado.

A constatação de que o efeito riqueza pode ter se tornado o principal canal de transmissão da política monetária, com as implicações distributivas mencionadas, pode levar a diversas conclusões, como: 1- Além da redução de juros, seriam extremamente importantes outras iniciativas no sentido de reverter o aumento da desigualdade de renda no Brasil, 2- A ausência de mecanismos de compensação distributiva tende a limitar o impacto da política monetária, levando a uma recuperação muito modesta da economia, e 3- Uma conjuntura de forte expansão da riqueza financeira, lado a lado com o modesto aumento da massa salarial, pode gerar preocupantes tensões sociais.

Nesse sentido, nunca é demais enfatizar a importância da reforma da Previdência recentemente aprovada pelo Congresso. Já a reforma tributária, além de um outro conjunto de medidas destinadas à eliminação de privilégios (como uma reforma administrativa, por exemplo), são fundamentais para fazer com que o Estado assuma um papel redistributivo, bem diferente da atual estrutura concentradora que caracteriza a coleta de impostos e alocação dos gastos públicos no Brasil.

Uma situação de desigualdade de renda excessiva sempre foi fator limitante à justiça social, democracia e liberdade plenas em uma nação. É bem provável que, cada vez mais atenção seja dada ao crescente obstrutor da falta de equidade mais diretamente sobre a política monetária e sobre o próprio crescimento.

Maurício Molan é consultor autônomo, economista do grupo G100 Brasil e conselheiro da Logus Capital.