O Globo, n. 32629, 07/12/2022. Opinião, p. 2

Acomodação para fechar a conta

Vera Magalhães


O acordo para a aprovação de uma versão intermediária, em prazo e valores, da PEC da Transição e as tentativas de última hora para costurar um acordo para tornar o orçamento secreto mais limpinho e palatável são movimentos que vão na mesma direção: fazer uma acomodação entre os Poderes para fechar a conta dos gastos e das emendas e garantir alguma dose de tranquilidade ao futuro governo na largada.

A equipe de Lula e o Congresso vão dando ao Supremo Tribunal Federal (STF) o recado de que não querem mais atrito, mais tanta confusão como foi a tônica dos quatro anos de Jair Bolsonaro. O subtexto, que vale para o STF e também para o futuro chefe do Executivo, vem da Câmara e do Senado: não nos tirem todo o oxigênio das emendas do relator, senão vai ter briga.

Lula já deu várias demonstrações de que entende e está disposto a jogar conforme essas regras não escritas. Ele já foi presidente por dois mandatos, e uma das grandes crises que enfrentou, a do mensalão, foi um escândalo originado na tentativa de estabelecer um mecanismo tosco de cooptação de maioria parlamentar.

Passados 17 anos, existe um mecanismo pronto, engenhoso, rodando a todo vapor, criado por Jair Bolsonaro, que ele pode usufruir sem sujar os punhos da camisa. Se vier “saneado” pelo STF, então, melhor ainda.

Outro trauma que parece ter ensinado ao petista foram as disputas pela presidência da Câmara e do Senado. As duas vezes em que o Planalto decidiu meter a mão nessa cumbuca resultaram em desastres. A primeira num registro quase cômico: Severino Cavalcanti em 2005. Com Eduardo Cunha em 2015, a coisa foi mais séria e resultou no impeachmentdeDilmaRousseff.ArthurLiraestámuitomaisparao cerebral Cunha que para o folclórico Severino.

A variável de imprevisibilidade dessa acomodação das abóboras no caminhão se chama Rosa Weber. A presidente do STF não quis delegar a relatoria das ações que apontam a inconstitucionalidadedoorçamentosecretoquandoassumiuo comando da Corte, muito provavelmente por pressentir que viria dos vizinhos da Praça dos Três Poderes alguma dose de pressãoparaquesedeixassetudocomoestá.Tambémdeixou deliberadamente para pautar o julgamento depois das eleições, para evitar a contaminação da decisão pela polarização da escolha do presidente. Duas atitudes cerebrais, frias.

Agora não há mais como postergar a decisão. Porque desse mecanismo depende, em grande medida, a construção da governabilidade dos próximos quatro anos, um xadrez que já tem complicadores de sobra, a começar pela ciumeira nos partidos que integraram a aliança de Lula desde sempre ou no final, passando pela numerosa e ruidosa bancada de direita ou extrema direita que saiu das urnas e desaguando nas ruas inflamadas pelo golpismo bolsonarista.

Muitos ministros do STF argumentam, reservadamente, que está na hora de o Judiciário sair dessa cena, atuar no julgamento dos atos antidemocráticos, ajudar a dar transparência às emendas, mas não querer definir como será a alocação de recursos no Orçamento, tarefa que caberia a Executivo e Legislativo. Mas Rosa não se alinha com esses cálculos políticos. Também não é uma ministra acessível a lobbies. Sua equipe de gabinete recebeu emissários do governo eleito e tem pontes com Lira e Rodrigo Pacheco, mas ela não.

Seu voto é longo, caudaloso, mas o conteúdo não foi franqueado previamente aos colegas. Que ela considerará inconstitucionais vários aspectos das emendas do relator (RP9) é considerado pule de dez. Mas ninguém arrisca dizer que votará pela extinção total delas. O julgamento tende a demorar. Não é o primeiro item da pauta de hoje, e amanhã é feriado, Dia da Justiça.

Em tese, há tempo para o Congresso construir uma versão mais republicana das emendas do relator e esperar que isso sensibilize o Supremo. Mas a chance de Rosa ser convencida por essa tentativa de acomodação é remota, para não dizer nula.