O Globo, n. 32710, 26/02/2023. Mundo, p. 19

'Em todos os casos que eu investiguei, foi dito aos homens para estuprarem as mulheres'

Entrevista: Christina Lamb


“Existe, hoje, uma epidemia de estupros". A frase forte é de Christina Lamb, 57 anos, correspondente internacional do britânico The Sunday Times e multipremiada pela cobertura de conflitos, incluindo anos de trabalho em Afeganistão, Paquistão, Líbia, Iraque, Síria e Nigéria. Condecorada pela rainha Elizabeth II com a Ordem do Império Britânico por sua contribuição ao jornalismo e coautora de “Eu sou Malala”, a biografia de Malala Yousafzai que vendeu 2 milhões de cópias, Lamb lança no Brasil, pela Companhia das Letras, o livro "Nosso corpo, seu campo de batalha", quase 500 páginas de reportagem sobre o estupro usado como arma em guerras e zonas de conflito.

Os relatos recolhidos por ela são pura barbárie: estupros coletivos de crianças e mulheres ucranianas pelas forças russas postados em sites de pornografia, jovens yazidis sequestradas pelo Estado Islâmico e vendidas repetidas vezes no Iraque e na Síria por valores entre US$ 20 e US$ 5 mil, campos de estupro criados durante a guerra da Bósnia e, muito perto de nós, militantes de esquerda escravizadas sexualmente por militares durante a ditadura argentina.

O trabalho de Lamb mostra que o estupro é perpetrado por forças militares e também por grupos sectários e étnicos com o objetivo de humilhar e amedrontar comunidades de forma a controlá-las, como acontece agora na Ucrânia, e para eliminar grupos étnicos ou religiosos considerados rivais, como foi na Bósnia e em Ruanda.

Lamb falou ao GLOBO por vídeo, de Genebra, onde, ao lado de Malala, participaria de uma conferência das Nações Unidas sobre o Afeganistão. Esta semana, ela volta à Ucrânia para cobrir o conflito que já dura um ano.

Por que você escolhe a palavra “epidemia” para falar sobre estupros em zonas de guerra?

Para o meu livro, eu viajei a 12 países, em cinco continentes, e foi difícil encontrar um conflito no qual a violência sexual não seja usada como uma arma de guerra. Em todos os casos, as mulheres falaram, as pessoas sabiam, mas nada foi feito. Os números de hoje são muito maiores do que eram há 35 anos, quando comecei a minha carreira como jornalista. E isso não ocorre apenas porque as mulheres estão denunciando mais. Existe, hoje, uma epidemia de estupros.

Se o estupro é uma arma de guerra, estamos falando de violência sexual deliberada, de ordens dadas a combatentes?

Em todos os casos que eu investiguei, foi dito aos homens para estuprarem as mulheres. O que acontece é que a Justiça, as forças de segurança e os negociadores da paz costumam se concentrar nas mortes e nas torturas, deixando os estupros de lado, como se fossem assuntos menores. Eu ouvi de um combatente que o estupro é a arma mais barata que os homens conhecem, custa menos que uma bala de fuzil Kalashnikov.

É uma arma usada contra mulheres em diferentes países?

Enquanto falamos, há mulheres denunciando abusos sexuais em conflitos na região do Tigré, na Etiópia, em centros de detenção na Bielorrússia e na região de Xinjiang, na China. Entrevistei recentemente ativistas que foram estupradas pela Guarda Revolucionária do Irã nos protestos que se seguiram à morte de Mahsa Amini e, é claro, há a Ucrânia.

A situação se repete na Ucrânia?

É difícil dizer qualquer coisa positiva sobre a guerra na Ucrânia, mas ela ajudou a chamar atenção para esse assunto. Há quem me diga que a Ucrânia precisará de um julgamento de Nuremberg, mas eu discordo. Nuremberg falhou com as mulheres. As pessoas sabiam que os russos estupraram milhões (o historiador britânico Antony Beevor calculou que as forças russas estupraram até 2 milhões de mulheres quando libertaram a Alemanha nazista), que houve estupros nos campos de concentração nazistas e que até mesmo outras tropas aliadas cometeram violência sexual. Nada foi dito em Nuremberg e, por isso, precisamos de algo diferente para a Ucrânia.

Volodymyr Zelensky denunciou os estupros cometidos pelas forças russas, um posicionamento raro vindo de um chefe de Estado, não é?

Sim. Zelensky colocou o estupro no mesmo patamar da tortura e do assassinato. Hoje, há muito mais gente falando sobre os abusos sexuais cometidos contra mulheres ucranianas do que aconteceu em conflitos passados. Poucas semanas após o início da guerra, ativistas me enviaram mensagens sobre os estupros. A linha direta criada no país recebeu 1.500 ligações nas primeiras seis semanas de conflito, funcionando 24 horas por dia.

Nada parece ser feito, no entanto, para punir os estupros nas zonas de conflito.

Na maioria das vezes são homens lidando com isso, e eles não veem os estupros como algo importante. Em seus 21 anos de existência, o Tribunal Penal Internacional só condenou uma pessoa por estupro (em 2016, o ex-vice presidente da República Democrática do Congo Jean-Pierre Bemba foi condenado por crimes de guerra em julgamento presidido pela brasileira Sylvia Steiner). Antes disso, o Tribunal Penal para Ruanda só teve um condenado por estupro, e isso só aconteceu porque entre os juízes estava a sul-africana Navanethem Pillay. Quando uma das sobreviventes do genocídio disse que tinha sido estuprada, e o promotor pediu para ela seguir adiante, Pillay interrompeu e fez as perguntas certas.

Ter mulheres em posição de poder faz diferença?

É preciso que esses homens paguem pelo que fizeram e, para isso, precisamos de mais juízas e promotoras, de mais mulheres envolvidas nas negociações de paz. Não há uma única negociação de paz em curso que seja liderada por uma mulher. É fato que, ao fim dos conflitos, os homens negociam e deixam esse tema de lado. É importante sabermos, no entanto, que não é preciso esperar que um tribunal internacional seja organizado. O estupro como crime de guerra é um crime universal. Qualquer pessoa, portanto, pode abrir um processo. Os países podem processar também, como Gâmbia fez com Myanmar por crimes contra a Humanidade.

É preciso, também, educar os homens para os direitos das mulheres?

O Afeganistão é um exemplo de que é muito importante educar os homens. Penso que cometemos um grande erro depois do 11 de Setembro. Houve muita discussão sobre os direitos das mulheres, mas ninguém pensou nos homens. Fazer apenas as mulheres conscientes de seus direitos não adianta agora que o Talibã está no poder. Elas estão aprisionadas, vendo suas esperanças e seus sonhos se desintegrarem, e nenhum homem protesta por elas. Vimos apenas aquele professor rasgar o diploma na TV, e ele foi preso. Isso diz muito sobre o envolvimento do Ocidente no Afeganistão: nós deixamos o país acreditando que está tudo bem se metade da população afegã pensa que as mulheres devem ficar em casa, sem estudar ou trabalhar.

Quanto mais sanções ao Talibã, mais eles oprimem as mulheres.

Exatamente. Pensava-se que o Talibã precisaria tanto de ajuda internacional que seria possível persuadi-los a ceder, mas o contrário aconteceu. São 28 milhões de pessoas perto da fome, há gente vendendo um rim e famílias vendendo suas crianças para comer. Mas a influência do Ocidente é limitada. Eu penso que os países muçulmanos precisam se envolver mais; é a eles que o Talibã vai ouvir.

Mesmo sabendo dos centros de detenção nas ditaduras sul-americanas, foi um choque descobrir que os militares argentinos escravizavam mulheres?

Eu sabia sobre os desaparecimentos na Argentina durante a ditadura militar, sobre os voos da morte e os sequestros de crianças. Mas eu não sabia que havia estupros em grande escala nos centros de tortura dos militares, isso foi um choque. Essas eram mulheres educadas, de Buenos Aires, que por razões políticas foram torturadas e estupradas repetidamente e escravizadas pelos militares. Nos últimos anos, infelizmente, essas mulheres viram o que aconteceu com elas se repetir com as yazidis em vilarejos do Iraque e da Síria. O estupro em situações de conflito atinge a todas, independentemente da classe social.

Você acha que seu livro teria sido possível antes de movimentos como o #MeToo denunciarem em massa os abusos sexuais?

Não tenho certeza se nós jornalistas estávamos fazendo as perguntas certas antes disso. Mas, mesmo depois do #MeToo, quando eu tentei escrever sobre esses casos pela primeira vez, meu editor me disse que ninguém queria ler sobre isso. Por sorte, o Sunday Times tem uma revista, que é editada por uma mulher, e ela entendeu que era importante publicar essas histórias.

Contar as histórias dessas mulheres faz diferença?

Uma das jovens yazidis que entrevistei para o livro me mandou uma mensagem questionando: "Eu contei a minha história, mas que diferença isso fez?". Não consegui responder. A coisa mais triste sobre o estupro é ser o único crime em que a vítima é levada a pensar que fez algo errado. Em muitos casos, elas são estigmatizadas, abandonadas por suas famílias ou precisam esconder sua dor para sobreviver. Eu sempre achei que o meu papel como jornalista era jogar luz nas coisas que aconteciam e que outras pessoas fariam algo a respeito.

Não acha mais?

Sinto que tenho a responsabilidade de falar sobre essas meninas e mulheres o quanto eu puder e em todas as plataformas possíveis. Continuo acreditando que o nosso trabalho é narrar os fatos como os vemos, só que estou nessa profissão há muitos anos e fiquei um pouco desiludida por contar as mesmas histórias repetidamente e nada mudar. Então entendi que, nós jornalistas, precisamos fazer um pouco mais, e isso não é um problema quando algo terrível como a violência sexual está acontecendo.

Você conta que precisou se preparar para entrevistar as sobreviventes de violência sexual. Por quê?

Nós jornalistas somos os primeiros a falar com pessoas profundamente traumatizadas, mas não somos treinados para isso. Relembrar essas histórias pode causar novos traumas nessas mulheres, por isso procurei sempre ter uma psicóloga presente comigo, ou alguém conhecido que as deixasse mais seguras. Elas querem contar suas histórias, mas a última coisa que nós queremos é puni-las ainda mais apenas porque temos um prazo para publicar. Aprendi que essas histórias precisam de tempo e que são pesadas também para os jornalistas.