O Globo, n. 32705, 21/02/2023. Economia, p. 9

Jornada feminina (ainda mais) estendida

Cássia Almeida


A divisão por gênero do trabalho em casa e no cuidado com os filhos é bem mais desigual do que as pesquisas mostravam até agora no Brasil. A tese de doutorado da professora Jordana Cristina de Jesus, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), constatou que, na faixa dos 30 anos, quando essa distância atinge o auge, as mulheres dedicam 28 horas por semana aos afazeres domésticos enquanto os homens gastam apenas sete horas semanais com essas atividades.

Em relação aos estudos anteriores sobre o tema, isso representa um aumento de sete horas para as mulheres e de duas horas para os homens.

Nessa matemática do trabalho dentro de casa, a jornada não remunerada chega a quatro horas por dia para as mulheres na faixa dos 30 anos, período em que a maioria já tem ou começa a ter filhos e também vive o auge profissional. Para os homens, fica em uma hora. Estudos anteriores apontavam que o trabalho feminino em casa era o dobro do masculino, mas, segundo a pesquisa de Jordana, chega a quatro vezes.

— Não seria consistente o país ter um patamar que fosse o dobro do tempo por exemplo. Esse seria o padrão de países nórdicos, que têm desigualdade de gênero muito menor que a nossa — diz Jordana.

Essa divisão se aproxima do padrão de países semelhantes ao Brasil em termos de demografia e renda, como Colômbia, Peru e México, onde o tempo gasto pelas mulheres com afazeres é o quádruplo do despendido pelos homens.

Ao analisar os dados, Jordana testou hipóteses. Ela verificou se a oferta de trabalho doméstico remunerado era maior aqui do que em países com resultados similares ou se haveria participação maior de mulheres no mercado de trabalho brasileiro, o que reduziria o tempo disponível para afazeres domésticos. Mas as premissas não se confirmaram. A conclusão foi que o trabalho doméstico não é bem medido no país.

— O Brasil não é diferente dos outros países nesses aspectos e tem uma taxa de fecundidade parecida. A diferença é que neles existem pesquisas de uso do tempo, que é mais indicado para captar esse trabalho — avalia Jordana.

‘A carreira parou’

Ao longo da vida, a jornada diária do afazer doméstico muda. Ela aumenta no período em que nascem os filhos e depois tem leve queda para as mulheres. Aos 50 anos, fica em 3h30 por dia para elas. Para os homens, cai para 40 minutos.

A economista Luciana Ferreira, professora da Fundação Dom Cabral, já sente os efeitos da mudança na rotina. Ela tem jornada diária de trabalho remunerado de oito horas por dia. Depois que a filha, Helena, de 4 anos nasceu, ela calcula que seu expediente de afazeres domésticos aumentou em duas horas e agora soma quatro horas diárias. O do marido também dobrou, mas passou de uma para duas horas.

— Quando são só um homem e uma mulher adultos, eles se viram. É mais fácil lidar com esse trabalho invisível. Quando vem o filho pequeno, a vida vira de ponta-cabeça. Tudo o que funcionava deixou de existir — diz Luciana.

Ela diz que o marido assumiu mais funções em casa depois que Helena nasceu, mas a carga mental e os cuidados recaem mais sobre ela. E dá como exemplo a natação:

— Helena adora nadar. Ele nada com ela. Mas eu fiz a mochila, passei o protetor solar, peguei a água. E sou eu quem tira da piscina, dá banho.

A carga horária prolongada de Luciana cresceu mesmo com alguns recursos, como a contratação de uma ajudante e a matrícula da filha em uma creche desde os 4 meses. Na carreira, a economista teve que dar um freio. E agora tenta retomar o ritmo. Mudou de emprego.

No anterior, logo depois de voltar da licença-maternidade, passou por uma rodada de avaliação e ouviu do chefe: “sua carreira parou”.

— Foi cortante, ainda que ele soubesse que fui atropelada pelas novas responsabilidades. Naquele momento ficou muito claro para mim: iria demorar a acelerar a carreira. Mudei de emprego na virada de 2019 para 2020, o que não é incomum nesses casos. Na volta ao trabalho (após licença-maternidade), nem sempre nos sentimos acolhidas no ambiente de trabalho. Claramente não fui.

Existem outros levantamentos que mostram como o trabalho doméstico ainda é subdimensionado no país. A economista do Dieese e professora da Universidade Estadual de Santa Catarina Cristina Pereira Vieceli calculou que o trabalho em casa e o cuidado com filhos e idosos representaria 15,4% do PIB, se fosse pago.

Como exemplo, essas atividades teriam um peso maior do que a indústria, que representa 12% do PIB. Desses 15,4%, 10,1 pontos percentuais são feitos por mulheres, principalmente as mais pobres.

No México, é estimada em 23,3% e na Colômbia, em 19,3%. Segundo os pesquisadores, a diferença entre os números só mostra que ainda mensuramos mal a jornada de afazeres domésticos. Em países desenvolvidos, com renda mais alta, o trabalho em casa chega a 32% do PIB, como no Canadá, explica Cristina.

Avanços nos afazeres domésticos

As pesquisadoras reconhecem que houve avanço nos levantamentos sobre afazeres domésticos. Mas alertam que pesquisas de uso de tempo, com as famílias anotando as atividades e o tempo gasto, tornam a mensuração mais precisa que a baseada em memória:

— O IBGE tem longo trabalho pela frente e precisa de orçamento para isso. Mas, colocar essas perguntas (sobre afazeres e cuidados na Pnad, pequisa que avalia renda, trabalho e outros fatores) já foi um grande avanço — diz Jordana.

E a solução para diminuir essa desigualdade, segundo a pesquisadora, vai além de uma igual divisão por gênero do trabalho doméstico. Ela pergunta como ficam as mães solo e lembra que uma jornada de trabalho remunerado de 44 horas semanais só existe porque outras pessoas estão cuidando da casa e da família:

— Temos que repensar em como conciliar trabalho e família. Para a conta fechar, não basta dividir melhor o trabalho entre homens e mulheres.

Ela cita desde políticas para desonerar eletrodomésticos, como máquina de lavar roupa e lava-louças, a creche em tempo integral:

— Para diminuir essa desigualdade na base da sociedade, tem que ter politica pública, não tem como elas sozinhas demandarem mudanças que não sejam por essa via.

Crise dos cuidados

As diferenças se acentuam cedo. Aos 13 anos, meninas pobres começam a fazer mais serviço doméstico para a família que receber, diz Simone Wajnman, professora do Departamento de Demografia da UFMG, que orientou a tese de Jordana. Nas classes média e alta, a transição é mais tardia.

Hildete Pereira de Mello, economista e professora da UFF, esteve na banca da tese de Jordana e diz que o ponto mais difícil para mães é quando filhos têm entre 0 e 3 anos:

— Entre as mulheres de rendimento alto, 56% colocam os filhos na creche. As mulheres pobres não têm isso. E nas camadas médias, elas se retiram do mercado do trabalho. O ganho não compensa o gasto com creche. Se quer se pensar em liberar a mulher, tem que ter ensino em tempo integral.

 

A solução pode ser copiada de países como Uruguai e Argentina. Jordana diz que o Brasil corre o risco de viver uma crise de cuidados, com a combinação de mulheres entrando cada vez mais no mercado de trabalho e o envelhecimento da população. Um em cada quatro brasileiros terá 60 anos ou mais em 2040.

— Esses países criaram um sistema nacional de cuidados e um orçamento que, do ponto de vista de gênero, envolve crianças e idosos. Vivemos uma situação cada vez mais dramática. Elas não darão conta de cuidar de seus idosos — diz.

Luciana, porém, tem notado mudanças na rotina. Na última reunião da escola de Helena, numa turma de 24 crianças, havia 42 pais presentes:

— E os homens quiseram falar sobre seus filhos, participaram.