O Globo, n. 32737, 25/03/2023. Brasil, p. 9

Trauma juvenil

Lucas Altino


No Brasil, uma a cada sete mulheres chegou aos 40 anos já tendo feito ao menos um aborto na vida, segundo uma estimativa da edição 2021 da Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) divulgada ontem. Das 2 mil mulheres de 18 a 39 anos entrevistadas em 125 municípios, 10% confirmaram já ter abortado, percentual que serviu como base da estimativa. Destas, 52% afirmaram ter feito o procedimento com menos de 19 anos. Segundo a pesquisa da UnB e do Instituto Anis, 43% das mulheres que abortaram precisaram ser hospitalizadas. A estatística mostra como o sistema de saúde é sobrecarregado por esse procedimento, destaca Débora Diniz, que coordenou a pesquisa ao lado de Marcelo Medeiros, da Universidade Columbia, e Alberto Madeiro, da Universidade Estadual do Piauí. Para Diniz, a descriminalização do aborto ajudaria na redução das internações.

— São cerca de 250 mil mulheres que chegam aos hospitais por ano para finalizar abortos. Metade é adolescente. Elas têm medo de falar a verdade aos profissionais. Perdemos a oportunidade de cuidar dessas mulheres, de saber se estão sofrendo violência, se tiveram acesso aos métodos seguros. Perdemos a oportunidade de prevenir e de reduzir essa taxa — explica Diniz.

— Aborto é um problema de saúde pública e atinge mais as mulheres muito jovens. O trabalho apontou que 21% das mulheres que abortaram repetiram o procedimento. Destas, 74% são negras. Nesse grupo, há uma predominância maior de mulheres pobres, na maioria do Norte e do Nordeste. Há ainda presença relevante de indígenas. Atualmente, a lei permite o aborto em casos de risco de vida da grávida, gravidez após estupro ou quando há anencefalia fetal. No Supremo Tribunal Federal, há uma arguição de descumprimento de preceito fundamental proposta pelo PSOL para que o aborto em até três meses de gestação seja descriminalizado. A ação está com a ministra Rosa Weber e não há previsão de julgamento.

Políticas públicas

Diniz explica que, com as leis de hoje, o governo já pode formular políticas públicas. No início do ano, o Ministério da Saúde revogou medidas da gestão Bolsonaro que eram criticadas, como a portaria que obrigava o profissional de saúde a avisar as autoridades policiais após a realização de um aborto, mesmo em casos legais. Mas o novo governo precisa avançar na questão, para a antropóloga e professora da UnB.

— Precisamos de ações focalizadas, como educação sexual nas escolas —afirma. A edição divulgada ontem é a terceira da pesquisa e a primeira em que houve uma pergunta sobre a idade do primeiro aborto. Desde a primeira edição, em 2010, o número de mulheres que fez abortos diminuiu. Em 2010, 15% disseram que haviam se submetido ao procedimento, taxa que caiu para 13% em 2016 e 10% agora. Diniz lembra que houve redução na taxa de fecundidade: há menos mulheres engravidando, e o total de abortos também cai. — Há uma nova geração de mulheres com maior adesão aos métodos anticoncepcionais —resume. Mas o patamar ainda continua elevado, frisa. A antropóloga afirma que o perfil de quem aborta no país é o de uma “mulher comum”:

— São mulheres de todas as classes sociais. Mas a mais afetada é a pobre, porque a de elite pega um avião e faz aborto na Argentina. A PNA não diferencia abortos legais de ilegais. Entretanto, os procedimentos induzidos, previstos em lei, são em um número muito menor: cerca de 2 mil por ano. Mas em 2022, de acordo com os DataSUS, houve um aumento de 14%, com 2.327 abortos legais, o maior número desde 2008.

— Pode ser um indicador de que a violência sexual aumentou, porque 95% dos abortos legais são por causa de estupro. Nos últimos anos, também houve casos midiáticos e outras vítimas podem ter se informado melhor sobre seus direitos — explica a ginecologista Helena Paro, coordenadora do Núcleo de Atenção Integral a Vítimas de Agressão Sexual do Hospital das Clínicas de Uberlândia.

“Discriminação é grande”

Mesmo com o direito assegurado em lei, nem sempre jovens abusadas sexualmente conseguem realizar o aborto. No ano passado, O GLOBO noticiou o caso de uma criança de 11 anos que engravidou pela segunda vez, em Teresina, após ser violentada por um vizinho. Apesar de ter desejado inicialmente o aborto, o procedimento foi impedido por decisões judiciais, em meio à falta de entendimento entre o pai e a mãe da criança. Conselheira tutelar de Teresina, Renata Bezerra diz que casos de abusos de parentes são corriqueiros e nem sempre as jovens conseguem o que a lei prevê.

—Quando decidem interromper a gravidez, elas pensam no que a sociedade vai falar e o que os pais vão reagir. A discriminação é muito grande. A gente sabe que é lei, mas o preconceito ainda é muito forte — explicou Bezerra, que acolheu a criança de 11 anos, hoje já finalizando sua segunda gestação, em um abrigo.

— Ela já havia tido uma criança, numa gravidez traumática. Na segunda vez, foi mais traumático ainda. Existe um protocolo. Se a mulher é abusada e há uma gravidez indesejada, ela não deveria esperar muito para conseguir o aborto.

Patrulha moral

Helena Paro recomenda o aumento das campanhas de conhecimento dos direitos das mulheres. E reforça que, durante o governo Bolsonaro, houve um retrocesso nessa política pública, o que resultou também no aumento do patrulhamento moral sobre vítimas de violência que buscaram hospitais para abortar. O Ministério da Saúde informou que faz ações de prevenção à gravidez na adolescência, ampliação do acesso a informações e orientações sobre os métodos contraceptivos disponíveis no SUS, e trabalha com estados e municípios para assegurar o acesso ao atendimento na rede pública e reforçar políticas educacionais sobre o tema.