Correio Braziliense, n. 21541, 09/03/2022.Mundo, p. 2

Um aceno para a paz
Rodrigo Craveiro


Pela primeira vez, o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, admitiu moderação sobre uma possível adesão à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e uma negociação em busca de um compromisso sobre o status de Donbass — região controlada pelos russos, no leste da ex-república soviética. "Em relação à Otan, moderei minha posição sobre essa questão há algum tempo, quando entendemos que a aliança militar não está pronta para aceitar a Ucrânia", declarou, antes de alfinetar a Otan. "A aliança tem medo de qualquer controvérsia e de um confronto com a Rússia."

Zelensky afirmou que pode debater itens sobre "os territórios ocupados temporariamente e as pseudorrepúblicas não reconhecidas por ninguém além da Rússia". Podemos achar um compromisso sobre como esses territórios viverão daqui em diante", acrescentou. As declarações, feitas na madrugada de ontem à rede de TV norte-americana ABC, sinalizariam a primeira indicação de uma saída diplomática para a guerra. O presidente da Rússia, Vladimir Putin, condiciona a suspensão da "operação especial" na Ucrânia à desmilitarização de Kiev; ao reconhecimento das repúblicas separatistas de Donetsk e Luhansk; e à independência da Crimeia, anexada em 2014 por Moscou.

Horas mais tarde, o próprio Zelensky fez um discurso histórico no Parlamento britânico, por meio de videoconferência, em que adotou um tom de confrontação. Ele invocou o ex-primeiro-ministro Winstor Churchill (1940-1945) e foi aplaudido de pé. "Não nos renderemos e não perderemos. Lutaremos até o fim, no mar, no ar. Continuaremos lutando por nossa terra, custe o que custar, nas florestas, nos campos, nas costas, nas ruas", declarou. Em junho de 1940, no momento em que a Alemanha nazista conquistava territórios na Europa, Churchill tinha feito uma promessa parecida em discurso ao Parlamento, em Westminster.

Zelensky lembrou que a Ucrânia mergulhou em uma guerra não provocada e indesejável. "Desde o primeiro dia, não dormimos, todos lutamos pelo nosso país, com o nosso exército", disse. Em seu discurso, o ucraniano citou ainda o escritor inglês William Shakespeare. "A questão para nós, agora, é ser ou não ser", disse. "Agora posso lhe dar uma resposta definitiva: é sim, ser". Ele pediu aos britânicos que aumentem a pressão das sanções contra a Rússia e a reconheçam como um Estado terrorista. Também fez um apelo por uma zona de exclusão aérea sobre a Ucrânia."Por favor, certifiquem-se de que nossos céus estejam seguros."

Em entrevista ao Correio, Olexiy Haran, professor de política comparativa da Universidade Nacional de Kiev-Mohyla (Ucrânia), disse que interpretou as declarações de Zelensky à rede de TV ABC sob outra perspectiva. "Não reconheceremos a Crimeia como uma parte da Rússia e a independência das pseudorrepúblicas do leste. O que ele quis dizer é que podemos discutir condições sobre quais partes da região de Donbass ocupada podem ser devolvidas à Ucrânia. Em relação à Otan, Zelensky quer encontrar outros meios de garantias de segurança. Um apoio militar claro da comunidade internacional", explicou por telefone.

Haran lembrou que, antes da guerra, o presidente foi criticado pelas forças políticas rivais. "Com a invasão, os partidos do governo e da oposição se uniram. Uma pesquisa divulgada em 1º de março mostra que Zelensky conta com 93% de apoio da população. Ele se tornou símbolo da resistência."

Fuga do inferno

Enquanto Zelensky falava ao Parlamento, milhares de ucranianos aproveitavam o primeiro dia de abertura de um corredor humanitário para fugir do país. Até o fechamento desta edição, mais de 2 milhões de civis tinham atravessado as fronteiras para nações vizinhas, especialmente a Polônia. Eles deixaram suas casas, seus sonhos e suas vidas para trás. O Ministério da Defesa da Ucrânia acusou a Rússia de violar o cessar-fogo na estratégica cidade portuária de Mariupol, praticamente devastada pelos bombardeios. "O inimigo executou um ataque na direção do corredor humanitário", afirmou o comunicado. Os russos prometeram nova trégua humanitária para a manhã de hoje.

Diretor do Centro de Pesquisa para Segurança Regional da Universidade Estadual de Sumy, Mykola Nazarov contou ao Correio que a cidade está praticamete isolada do resto do país. Situada no nordeste da Ucrânia, a apenas 60km da fronteira com a Rússia, Sumy é uma das cinco cidades de onde se abriram corredores humanitários para a fuga de civis. "Estamos bloqueados, não há como recebermos suprimentos", afirmou o professor. Na noite de segunda-feira, um bombardeio russo matou 21 pessoas, incluindo duas crianças. Dos 270 mil moradores de Sumy, 3.500 partiram ontem, entre eles 1.700 estudantes estrangeiros. "As sirenes antiaéreas se tornaram diárias, e combates nas ruas são periódicos", disse Nazarov.

Ainda segundo Nazarov, pela primeira vez, moradores de Sumy partiram em direção a Poltava (a 174km ao sul). "As colunas de refugiados estão na estrada. Os temas dos corredores humanitários são muito difíceis de serem resolvidos. Não existe certeza de que o lado russo comprirá com o acordo", comentou. Os cidadãos que insistem em ficar em Sumy se uniram ao exército para defesa territorial. "Criamos redes de voluntários para resolver assuntos importantes. Nós coordenamos a entrega de produtos vindos de vilarejos próximos, alguns são distribuídos sem custos. É possível solicitar fundos para receber comida e remédios", disse Nazarov.

Em Kiev, o cineasta Leslyk Yakymchuk, 29 anos, e a namorada se mobilizam para ajudar as tropas. "Tentamos coletar suprimentos dentro e fora da Ucrânia para fazê-los chegar aos soldados. Se preciso, pegarei em armas para defender o meu país."