O Globo, n. 32766, 23/04/2023. Política, p. 11

Filha de PC Farias quer o pai sem a pecha de Vilão

Eduardo Graça


Há 15 anos Ingrid Farias recebeu uma carta psicografada da mãe, morta em julho de 1994, aos 44 anos, por edema pulmonar e ataque cardíaco, quando dormia ao lado da filha adolescente. A caligrafia e o estilo, conta, eram os de Elma Farias. Que informava estar bem, mas alertava ser preciso rezar para o companheiro de vida descansar no plano espiritual. Em 23 de junho de 1996, o então inimigo público número um do país foi assassinado, aos 50 anos, em sua casa de praia, ao norte de Maceió, com um tiro no peito. Ao lado, sem vida, alvejada no coração, a namorada Suzana Marcolino, de 28 anos.

“Quem matou Paulo César Farias” virou uma novela cujo enredo, que incluía corrupção, traições, sexo, dinheiro, política e misticismo, capturou a atenção nacional. Ingrid tinha 16 anos e, desde então, manteve-se distante dos holofotes. Não mais. Casada com o empresário Talles Alencar, de 46 anos, e mãe de dois filhos, Paulo César Farias Neto, de 14, batizado em homenagem ao avô, e João Pedro, de 6, Ingrid, aos 42, é personagem central, cá no mundo material, de duas novas produções que se debruçam sobre a trajetória do tesoureiro da vitoriosa campanha de Fernando Collor de Mello em 1989, pivô de seu impeachment três anos depois. O documentário “Morcego Negro” e a série de ficção “Segredos tropicais” buscam desvendar o homem por trás da caricatura e as relações viciadas de poder, com Alagoas como microcosmo do Brasil. Ingrid tem motivação aparentemente mais simples: tirar do pai a pecha de vilão.

“Quase um anjo”

“Morcego Negro”, de Chaim Litewski e Cleisson Vidal, coprodução de GloboNews, GloboFilmes e outros, foi destaque semana passada do É Tudo Verdade e entrará em circuito. “Segredos tropicais”, série de ficção em desenvolvimento pela Boutique Filmes, que comprou de Ingrid os direitos de adaptação da história, produzida por Gustavo Mello e Guilherme César, se passa nos últimos anos de vida de PC.

— Há quem diga que estamos atrás de dinheiro. Não é verdade. Quero que meus filhos saibam a história do avô, não o que está registrado na imprensa —diz Ingrid. O documentário, que parte do livro “Morcegos negros”, do jornalista Lucas Figueiredo, termina com Collor afirmando que “no contexto do atual momento político brasileiro, Paulo César foi quase um anjo”. Já a ex-ministra Zélia Cardoso de Mello, uma das mais de 50 entrevistadas, é direta sobre o preconceito do empresariado com o sujeito careca, barrigudo, com sotaque e bigode espesso: “Eles o viam como um cangaceiro”. O que não impediu o mercado de despejar rios de dinheiro nos cofres da campanha em 1989 a fim de evitar a vitória do PT. Ingrid foi central para se entender os Farias, “tipicamente brasileiros, festeiros”. Ela os retira, diz Litewski, do “imaginário dos esquisitões”. Documentário e série não passam pano para o ex-seminarista acusado de formação de quadrilha, captação ilegal de fundos de campanha eleitoral e cobrança de propina para licitações 

PC com os filhos, Ingrid e Paulinho: “família típica brasileira, festeira” de obras, mas o humanizam. E “Morcego Negro”, referência ao jato de PC, revela documentos confirmando a intenção das polícias de EUA, Suíça e Itália de questioná-lo pela movimentação de dinheiro em contas onde também circulavam montantes da máfia e do tráfico.

— Ouvia coisas, mas nunca perguntei de onde saiu o dinheiro para a fuga dele após a prisão ser decretada ou sobre desvios. Ele cometeu erros, mas foi um bode expiatório — crê Ingrid, sem mencionar a palavra “crime”.

A morte de PC ocorreu dois dias antes de ele depor na CPI das Empreiteiras. Aos 16, Ingrid estava órfã de mãe e pai. Os assassinatos dele e de Suzana só foram oficialmente solucionados há dez anos, por júri popular, com duplo homicídio e absolvição dos seguranças acusados de não protegerem as vítimas.

Após o assassinato do pai, Ingrid e o irmão, Paulinho, ficaram sob a tutela de um dos tios, o ex-deputado Augusto Farias. Com a maioridade, ela ajudou na administração das empresas do pai e hoje investe na agência de publicidade da prima. O marido, produtor de eventos culturais, já organizou na Mansão das Mangabeiras, principal residência de PC, a apresentação de Emílio Santiago, Fafá de Belém e Guilherme Arantes, entre outros. E festas, pois havia o fetiche de se celebrar na “casa do PC”. O casal sempre viveu em Maceió e não guarda rancor de políticos que sumiram após a derrocada de PC. Para o papel do ex-tesoureiro na série, sugere Wagner Moura, “incrível como Pablo Escobar em ‘Narcos’”. [—Fiz campanha para Renan Filho, quando encontro Collor nos abraçamos. E sempre votei em Lula, um fofo — conta Ingrid, que revela ter, além de passar a limpo a memória do pai, outro sonho: participar do Big Brother Brasil.