O Estado de São Paulo, n. 46677, 04/08/2021. Política p.A4

 

Bolsonaro tenta minimizar conflito com o Judiciário

 

Lauriberto Pompeu

Um dia depois de o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) abrir inquérito para investigar Jair Bolsonaro por acusações infundadas contra as urnas eletrônicas, além de condicionar a realização das eleições de 2022 ao voto impresso, o presidente transformou o conflito com o Judiciário em rixa pessoal. Em novo ataque ao presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, Bolsonaro disse que não aceitará “intimidações” nem eleições “duvidosas” e sugeriu haver um “complô” para eleger o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

“O que eu falo não é um ataque ao TSE ou ao Supremo Tribunal Federal. É uma luta direta com uma pessoa apenas: ministro Luís Barroso, que se arvora como dono da verdade”, disse Bolsonaro a apoiadores, no Palácio da Alvorada. “Jurei dar minha vida pela Pátria. Não aceitarei intimidações. Vou continuar exercendo meu direito de cidadão, de liberdade de expressão, de crítica, de ouvir e atender, acima de tudo, a vontade popular.”

Em uma ação coordenada com ministros do Supremo, o TSE decidiu, por unanimidade, na noite de anteontem, determinar duas medidas contra o presidente. Além do inquérito sobre as denúncias falsas feitas por Bolsonaro contra o sistema eleitoral, o TSE pediu ao Supremo que o investigue no caso das fake news. Trata-se de um inquérito conduzido pelo ministro do STF Alexandre de Moraes que já tem provas de participação de aliados de Bolsonaro em ataques orquestrados às instituições.

O desfecho dessas investigações pode tornar Bolsonaro inelegível, caso ele seja responsabilizado criminalmente, além de levar à impugnação de eventual registro de sua candidatura a um segundo mandato.

O ministro da Defesa, Walter Braga Netto, também disse que só haverá eleições em 2022 com voto impresso. Como revelou o Estadão, o presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), recebeu esse recado de Braga Netto, por meio de um interlocutor político, no último dia 8. Naquele mesmo dia, Bolsonaro afirmou: “Ou fazemos eleições limpas no Brasil ou não temos eleições”.

A reabertura dos trabalhos do Judiciário, anteontem, foi marcada por uma estratégia agressiva para conter a disseminação de fake news e as ameaças feitas às eleições, por parte do presidente. Tanto Barroso como o presidente do Supremo, Luiz Fux, saíram em defesa da estabilidade democrática e cobraram respeito às instituições.

Em transmissão ao vivo nas redes sociais, na última quintafeira, Bolsonaro exibiu vídeos antigos e informações sobre as urnas eletrônicas que já foram consideradas falsas por agências de checagem, como o Estadão Verifica, na tentativa de mostrar que o atual sistema – pelo qual ele próprio foi eleito – é fraudável. Disse, no entanto, que não tinha provas, mas, sim, indícios de suas acusações. O link da transmissão – divulgada pela TV Brasil, uma emissora pública – foi enviado na notíciacrime apresentada por Barroso.

Para o corregedor-geral da Justiça Eleitoral, Luís Felipe Salomão, o inquérito administrativo deverá apurar fatos que possam configurar “abuso do poder econômico e político, uso indevido dos meios de comunicação social, corrupção, fraude, condutas vedadas a agentes públicos e propaganda extemporânea, relativamente aos ataques contra o sistema eletrônico de votação e à legitimidade das eleições 2022”.

Na conversa com apoiadores, ontem, Bolsonaro fez novas ameaças. “Se o ministro Barroso continuar sendo insensível, como parece que está sendo, quer processo contra mim, se o povo assim o desejar – porque lealdade ao povo brasileiro – (haverá) uma concentração na Paulista para darmos um último recado para aqueles que ousam açoitar a democracia”, disse. “Repito: o último recado para que eles entendam o que está acontecendo e passem a ouvir o povo. Eu estarei lá.”

Bolsonaro afirmou que Barroso está “cooptando” ministros do STF e do TSE para “impor sua vontade”. Acusou, ainda, magistrados de favorecer Lula na eleição de 2022. “Nós sabemos o quanto o senhor Barroso deve ao senhor Luiz Inácio Lula da Silva”, afirmou.

Desde que as pesquisas de intenção de voto começaram a mostrar Lula na liderança, Bolsonaro aumentou as críticas ao sistema eletrônico de votação. Na prática, o presidente tentar construir uma narrativa para tumultuar o ambiente político e, se necessário, justificar eventual derrota nas eleições.

 

‘Macho’. Em vários momentos de sua manifestação, o presidente citou Barroso. “Senhor Barroso, sua palavra não vale absolutamente nada. Está a serviço de quem?”, questionou. “Não é o caso de eu e ele mostrar (sic) quem é mais macho. Não é briga de quem é mais macho, mas aqui não abro mão de demonstrar quem respeita ou não a Constituição. A alma da democracia é o voto e o povo tem que ter a certeza absoluta que o voto dele foi para aquela pessoa.”

 

Nota. Anteontem, ministros do TSE e do Supremo, além de ex-presidentes da Corte Eleitoral, se uniram para divulgar nota conjunta com críticas ao movimento de Bolsonaro em favor do voto impresso. Barroso chegou a dizer, depois, que o voto impresso é “a porta aberta” a ocorrência de fraudes, o incentivo ao coronelismo e às milícias.

“O ministro Barroso presta um desserviço à Nação brasileira. Cooptando gente de dentro do Supremo, querendo trazer para si, ou de dentro do TSE, como se fosse uma briga minha contra o TSE ou contra o Supremo. Não é contra o TSE nem contra o Supremo. É contra um ministro do Supremo, que é também presidente do Tribunal Superior Eleitoral, querendo impor a sua vontade”, insistiu Bolsonaro.

O voto impresso já foi adotado em caráter experimental nas eleições presidenciais de 2002, mas acabou reprovado pelo TSE. Naquele ano, para testar o sistema, a medida foi adotada em 150 municípios, atingindo 6,18% do eleitorado. “Sua introdução no processo de votação nada agregou em termos de segurança ou transparência. Por outro lado, criou problemas”, apontou relatório do TSE.

 

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Comissão da Câmara aprova convocação de Braga Netto

 

A Comissão de Trabalho, Administração e Serviço Público da Câmara aprovou, ontem, a convocação do ministro da Defesa, Walter Braga Netto, para que explique as ameaças à realização das eleições de 2022. Como revelou o Estadão, o general enviou recado ao presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-al), por meio de um interlocutor político, de que não haveria eleições no ano que vem sem a aprovação do modelo de voto impresso.

A convocação de Braga Netto foi aprovada por 15 votos a 7 e a intenção é marcar o depoimento para o próximo dia 17. O deputado Rogério Correia (PT-MG), autor do requerimento, afirmou que "a ameaça se constitui em grave crime praticado contra o sistema democrático, fato este que precisa ser apurado"./ BRENO PIRES

 

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‘Fulanizar’ inimigos é tática dos neopopulistas

 

ANÁLISE: Rubens Figueiredo

 

Uma das estratégias de marketing do neopopulismo é promover o rodízio dos supostos “inimigos” da pátria, do povo ou até, pasme, da democracia. O eleito da vez pode ser Leonardo Dicaprio, os políticos tradicionais, a esquerda, o Supremo Tribunal Federal, a vacina, a Greta Thunberg, a imprensa, as Universidades, o calça apertada. A lista é longa.

A bola da vez e alvo preferencial das invectivas do presidente Jair Bolsonaro é o voto eletrônico e a consequente reivindicação do voto impresso, chamado de público, auditável. É incrível, mas é verdade: ele se insurge contra o sistema utilizado quando da sua eleição. É mais ou menos como o time que vence por 1 x 0 reivindicar o VAR para confirmar o gol que anotou...

Mas há alguma lógica por trás disso. Se o presidente perder a eleição no ano que vem, ele terá como que legitimado sua suspeição. Depois, Brasil atravessa tempos sombrios, com pandemia, desemprego, perspectiva de racionamento de energia e uma CPI na qual o governo não está exatamente confortável. Nesse sentido, trazer um assunto secundário para o centro do debate nacional é uma jogada bem interessante. Bolsonaro deu uma guinada no discurso. Ao invés de criticar o Tribunal Superior Eleitoral ou o Supremo Tribunal Federal, paradas indigestas, “fulanizou” a briga: centrou fogo na figura do ministro Luís Roberto Barroso. Agora, é o ministro, pessoa física, quem não quer “transparência” e que a urna reflita a vontade do eleitor. Não se preocupe, semana que vem, inimigo novo.