Título: A aposta de Kirchner
Autor: Rodrigo Fonseca
Fonte: Jornal do Brasil, 08/09/2005, Outras Opiniões, p. A11

Em 23 de outubro serão realizadas eleições legislativas na Argentina. Eleições essas que devem ser observadas atentamente pelo Brasil por dois motivos: primeiro, porque elas podem sinalizar a direção para qual a Argentina seguirá e em segundo lugar, porque a campanha pode ter impactos nas relações entre os dois países.

A razão pela qual uma essa eleição legislativa ganhou tamanha importância é que o próprio presidente Néstor Kirchner afirmou que pretendia transformá-la em um plebiscito sobre sua gestão. Ou seja, o seu governo estaria em jogo. Se os candidatos ligados ao governo obtivessem uma boa votação, seria um sinal de apoio ao presidente, caso contrário seria um sinal de desaprovação. Para um presidente que se elegeu com 22% dos votos, devido à desistência de Carlos Menem de concorrer ao segundo turno, a aprovação das urnas é importante.

Nessa busca por conseguir eleger os seus candidatos e obter apoio eleitoral para seu governo, Kirchner vem jogando alto, muitas vezes disputando poder dentro de seu próprio partido, o Justicialista (PJ - peronista). Além disso, vem colocando aliados próximos e membros do alto escalão do governo em suas listas eleitorais, muitas vezes por fora da lista oficial do PJ. Entre seus candidatos estão a primeira dama, Cristina, que disputa uma vaga no Senado pela província de Buenos Aires, sua irmã, Alicia Kirchner, atual ministra do Desenvolvimento Social, como primeira da lista de candidatos ao Senado na sua província natal, Santa Cruz, e o chanceler, Rafael Bielsa. Este encabeça a lista de deputados na cidade de Buenos Aires. E eis aqui um problema. Bielsa, mesmo candidato, ainda exerce o cargo de chanceler, o que pode causar mal-entendidos acerca de suas declarações. Como separar o ministro do candidato? O discurso nacionalista, muitas vezes anti-Brasil, ainda rende votos na Argentina, o que poderia explicar as declarações duras que Bielsa fez meses atrás sobre endurecer a política com o Brasil, provocando mal-estar entre os dois países.

Mas não são somente as relações com os vizinhos que sofrem risco com a estratégia de Kirchner. No afã de conquistar eleitores, o presidente optou pela velha tática de gastar dinheiro para ganhar eleição. Em um curto espaço de tempo, já decretou vários aumentos de salário e ampliou a concessão de subsídios a setores da economia argentina, gerando mais gastos. Da mesma forma, o presidente parece estar jogando para a platéia, quando endurece o discurso com organismos internacionais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI). Amparado na liturgia peronista, o presidente quer cada vez mais se apresentar como o defensor dos descamisados. Voltam a surgir na campanha os hinos do partido, bem como as imagens de Perón e Evita. Da mesma forma, ressurge no horizonte o fantasma do populismo.

E o primeiro a chamar atenção para isso foi o próprio ministro da Economia do país, Roberto Lavagna. Em uma declaração que gerou mal-estar entre a Economia e a Casa Rosada, Lavagna pediu cautela ao presidente para que o país não caísse em ''um populismo setentista''. Isso porque os gastos do governo estão aumentando o endividamento do país, que acabou de realizar a maior renegociação de dívida da história (o maior calote, pode ser dito também) e provocando um preocupante aumento da inflação, que pode comprometer o crescimento do país, que apesar de forte desde 2003, ainda está se recuperando dos efeitos da crise de 2001.

O presidente sabe que aposta alto, pois com tanto empenho do governo e tantas figuras de proa de sua gestão diretamente envolvidas, uma vitória pode ser o sinal verde para a continuidade de suas políticas. Já uma derrota pode significar uma substancial perda de apoio, além de por em risco a governabilidade, caso o governo sofra uma fragorosa derrota, já que se renovará um terço do Senado e metade da Câmara. Ademais, caso seus candidatos percam, pode faltar ao presidente a importante legitimidade das urnas para dar prosseguimento ao seu projeto e, obviamente, comprometer a sua reeleição.

Em resumo, o resultado dessas eleições pode ser um bom indicativo da política Argentina futura. Uma vitória de Kirchner significaria a continuidade dos seus projetos, que, apesar das desavenças, estão afinados com o Brasil e comprometidos com o Mercosul e com a integração regional. Uma derrota do governo poderia comprometer esse caminho. Especialmente se candidatos como Menen e Domingo Cavallo (que tentam retornar à vida pública) obtiverem uma ampla votação. Uma vitória dessas forças afetaria certamente a política Argentina, fazendo-a inclinar-se à direita, o que poderia prejudicar as relações com o Brasil. De todo modo, há de se tomar cuidado com as declarações dos candidatos/ministros, para que retóricas de campanha mais inflamadas não criem entreveros entre os dois países.

Kirchner joga alto. Resta saber qual será o resultado para o país, independente do resultado para o presidente.