O Estado de S. Paulo, n. 46645, 03/07/2021. Notas & Informações, p. A3

Socorro ainda mais necessário



A pandemia de covid-19 evidenciou ainda mais a desigualdade social que há séculos se mantém como uma das mais renitentes mazelas desta Nação, talvez a mais brutal de todas. Se o vírus não distingue raça, gênero ou saldo bancário para agir, é certo que, para os milhões de desvalidos do País, aos efeitos próprios da crise sanitária, já angustiantes o bastante, somaram-se as agruras da profunda crise econômica que dela decorreu. Emprego e renda foram perdidos e, para muitos brasileiros, insegurança sanitária e insegurança alimentar caminham pari passu.

Mas a tragédia também revelou o quão solidários são os brasileiros. A filantropia de segmentos da elite econômica do País, em especial do setor financeiro, e da classe média, que vieram em socorro aos mais necessitados nesta hora grave, renovou a esperança de que uma repactuação social seja possível. Que ela é necessária está mais do que evidente, e não só para diminuir a abissal distância entre ricos e pobres, mas também para acabar de vez com a miséria em que vivem milhões de nossos concidadãos.

Entre março e dezembro do ano passado, o total arrecadado em ações filantrópicas para combate à pandemia de covid-19 foi de R$ 6,53 bilhões. Em maio, chegou-se aos R$ 7 bilhões, um recorde de doações por uma única causa. Os dados são da Associação Brasileira de Captadores de Recursos (ABCR).

Em que pese o feito extraordinário, é forçoso notar que o ímpeto das doações arrefeceu bastante a partir do segundo semestre do ano passado. Entre março e maio de 2020, foram doados R$ 5,5 bilhões. Entre janeiro e maio deste ano, R$ 458 milhões. Ou seja, quase 80% do total de doações foi concentrado nos dois primeiros meses de crise sanitária. É um dado preocupante, porque a crise é muito mais grave hoje do que era há um ano. E não há qualquer sinal de abrandamento da pandemia no Brasil, muito ao contrário. O País está à beira de uma terceira onda da doença sem sequer ter se recuperado da segunda. Epidemiologistas têm alertado a população e as autoridades de que esta nova onda de casos tem potencial para ser ainda mais mortal do que tem sido a segunda.

Portanto, a fim de evitar uma escalada do número de mortes em um país já enlutado o bastante, medidas mais duras de restrição à circulação de pessoas deverão ser adotadas pelas autoridades responsáveis enquanto a vacinação da população-alvo não atinge o patamar de segurança para frear a disseminação do vírus. Vale dizer, ainda levará tempo para que milhões de brasileiros recuperem o emprego e a renda perdidos. Ainda mais necessário, pois, é o socorro do Estado e da sociedade.

A classe média, que da forma que pode tem auxiliado bastante na mitigação do flagelo causado aos mais vulneráveis, também se vê afetada pela crise duradoura. A capacidade de doação das pessoas físicas pertencentes a este estrato social decerto não é mais a mesma do que era no início da pandemia. Portanto, o socorro das empresas torna-se ainda mais fundamental.

O marcador de doações da ABCR emite um sinal de alerta para a queda nas doações de grandes empresas neste ano. Em face do descaso do governo federal em relação aos mais vulneráveis – até hoje não se estruturou uma nova rodada do auxílio emergencial robusta o bastante para dar conta das necessidades dos milhões de desempregados –, não é exagero dizer que muitos brasileiros dependem diretamente da solidariedade para ter o que comer. Torna-se vital, portanto, a benevolência dos grandes filantropos.

Estes, como ocorre nos Estados Unidos, por exemplo, mais do que agir para socorrer imediatamente quem mais sofre com os efeitos da peste, podem contribuir para transformar a realidade do País com doações para projetos estruturais voltados a um Brasil menos desigual no futuro. Pouco a pouco, essa cultura filantrópica tem amadurecido no País. Um dos poucos efeitos positivos da pandemia foi ter acelerado este processo ao lançar luz para situações que já não podem mais ser toleradas.

O Congresso tem papel primordial nesse processo de valorização da cultura filantrópica, debatendo soluções tributárias inovadoras ou outros tipos de compensação.