O Globo, n. 32749, 06/04/2023. Economia, p. 11

Revisão do marco

Geralda Doca
Bruno Góes
João Sorima Neto


O presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou ontem dois decretos que flexibilizam o marco legal do saneamento básico, sancionado em 2020, no governo Jair Bolsonaro. Na prática, companhias estaduais deficitárias serão as principais beneficiadas pela medida, e especialistas veem riscos de judicialização e de não cumprimento da meta de universalização dos serviços em 2033. O governo, por sua vez, argumenta que as mudanças vão destravar investimentos de até R$ 120 bilhões no setor em dez anos. O anuncio teve caráter político, em cerimônia no Palácio do Planalto, com a presença de governadores e presidentes de empresas de saneamento.

A revisão da legislação permite que as empresas estatais mantenham contratos sem licitação com os municípios, o que o marco legal de 2020 havia proibido, abrindo espaço para o leilão do serviço a companhias privadas. A mudança garante sobrevida a estatais deficitárias, ou seja, que não conseguem fechar seus balanços no azul e têm baixa capacidade de realizar investimentos.

O governo também retirou o limite de 25% para a participação de Parceria PúblicoPrivada (PPP) em concessões de saneamento. Agora, não haverá restrição. Na prática, uma estatal poderá entregar para o setor privado todo o serviço, mas o contrato continuará sendo entre a empresa pública e uma cidade.

Segundo especialistas, as novas regras criam insegurança jurídica, afastam investimentos privados e prejudicam a população mais pobre, que hoje está sem acesso a água e tratamento de esgoto. Eles argumentam que a meta de universalização dos serviços em 2033 —fornecer água para 99% da população e coleta e tratamento de esgoto para 90% —também pode ficar comprometida.

— O principal problema é a possibilidade de prestação do serviço pelas companhias estaduais sem licitação, sem concorrência. Dessa forma, você assegura uma reserva de mercado a quem não tem condições de prestar o serviço e penaliza principalmente os mais pobres —afirmou o economista Gesner de Oliveira, da Go Associados.

R$ 120 bi em investimentos

O decreto ainda prorroga para dezembro deste ano o prazo para que estatais provem que são capazes de fazer os investimentos que levarão cada cidade a ter atendimento universal de saneamento. Se não houver a comprovação, o governo local precisa licitar a área. O texto, porém, flexibiliza os critérios para a comprovação da capacidade das empresas, o que beneficia estatais cujos contratos seriam encerrados.

As novas regras permitem ainda a formação de blocos de cidades (que não precisam ser vizinhas) para a licitação dos serviços, de maneira que municípios pequenos se juntem para dar atratividade financeira à operação. A formação dos blocos teria que ocorrer até 31 de dezembro de 2025. Caso a cidade decida não formar um bloco, ela fica proibida de receber recursos públicos federais e financiamentos com recursos da União para serviços de saneamento.

Na visão do governo federal, as mudanças no marco do saneamento vão destravar investimentos de até R$ 120 bilhões no setor até 2033. Para o presidente Lula, o texto vai beneficiar as estatais e prefeituras que ainda não licitaram o serviço. Ele disse que é preciso dar “um voto de confiança” aos entes públicos:

— Essa política é, primeiro, colocar credibilidade na relação entre federados. E também fazer um voto de confiança nas empresas públicas que prestam serviços à população —disse o presidente, ao elogiar a negociação com estados e municípios.

— Esgoto é uma coisa muito complicada. Gasta-se muito dinheiro, mas atende de uma forma extraordinária (a população), porque atende à saúde, mas pouca gente vê (a obra) e ainda xingam os prefeitos.

Os operadores privados de saneamento consideraram o fim do limite de 25% para a contratação de PPPs um avanço. Segundo a Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto, dessa forma, companhias públicas e privadas terão mais uma opção para viabilizar os investimentos necessários para o setor.

Na opinião de Claudio Frischtak, economista da Inter.B Consultoria e especialista em infraestrutura, as alterações “dissolvem o marco do saneamento” de 2020. Ele acredita que a medida pode ser derrubada pelo Judiciário:

— Isso destrói o marco regulatório do saneamento e representa um enorme retrocesso.

Frischtak afirma que, diante da insegurança jurídica gerada pelas alterações, a meta de universalização já está comprometida, porque os investidores vão se afastar. Ele destacou que a maior parte das estatais não consegue cumprir sua função social, que é investir para ampliar a cobertura.

A regulamentação de 2020 permitiu a entrada da iniciativa privada —mais de 20 leilões foram feitos desde o início do marco, incluindo o da Cedae, em 2021, com investimentos que ultrapassam R$ 50 bilhões.

O governo manteve a Agência Nacional de Água e Saneamento Básico (ANA) como órgão regulador. Contudo, técnicos da própria agência manifestam, de modo reservado, apreensão com as alterações e o risco de afetar o alcance das metas de universalização.

O ministro das Cidades, Jader Filho, argumentou que as mudanças eram necessárias porque o marco de 2020 não trouxe uma fase de transição para que as estatais pudessem se adaptar.

— O prazo foi muito apertado —disse o ministro, acrescentando que as empresas terão metas intermediárias e serão fiscalizadas pelas agências estaduais e pela ANA.

‘Vai faltar filé’

Segundo Jader Filho, sem os decretos, 1.113 municípios com 30 milhões de habitantes que não dispõem de serviços autônomos e têm contratos precários e irregulares ficariam impedidos de receber recursos públicos.

Para Vitor Ivanoff, sócio da Terrafirma Consultoria, o novo marco reorganiza as regras, além de reconhecer que o setor privado não conseguirá resolver o problema sozinho e que investimento público será necessário. Mas, ainda assim, o “elefante na sala” foi mantido: ou seja, grande parte dos projetos de universalização de água e esgoto não é viável.

— Em muitos municípios há falta de vontade política ou planejamento. Mas a falta de viabilidade dos projetos é relevante. Implementar coleta de esgoto dobra a tarifa e, mesmo assim, não é suficiente para pagar o investimento. Com inadimplência, a conta não fecha —disse Ivanoff.

Ele afirma que a formação de blocos (o modelo chamado “filé com osso”), em que municípios considerados melhores para viabilização dos projetos carregam os menores, é uma fórmula que se esgota:

— E não houve nenhum incentivo para os bons municípios carregarem o bloco neste novo marco. Vai faltar filé nesse prato, e o modelo se esgota rápido.