O Estado de S. Paulo, n. 46642, 30/06/2021. Brasil é Agro, p. 6

Para o Brasil atender à demanda global de alimentos sustentáveis, a palavra-chave é tecnologia

Entrevista: Celso Moretti, Presidente da Embrapa


Além de contribuir para o aumento da produtividade da agricultura e pecuária brasileiras, a adoção de tecnologia vai ajudar o Brasil a se consolidar como fornecedor de alimentos produzidos com baixa emissão de carbono, avalia o presidente da Embrapa, Celso Moretti. "Se tem um lugar que está preparado para essa grande demanda mundial por produtos mais sustentáveis, com redução de emissão de carbono, é o Brasil." A agricultura de baixo carbono é uma das prioridades da Embrapa até 2030, mas também outras tecnologias ligadas à sustentabilidade, como o avanço dos sistemas de integração de lavoura, pecuária e floresta e a economia de base biológica (bioeconomia), são prioritárias na principal empresa pública de pesquisa do País. Moretti reconhece que a pandemia de covid-19 acelerou a adoção de tecnologias por parte dos produtores rurais, principalmente na questão da digitalização do agro – o número de agtechs, por exemplo, cresceu 40%, cita, com base em estudo da Embrapa em parceria com a iniciativa privada. Reconhece como gargalo, porém, a falta de conectividade no campo. "Ainda que 84% dos produtores tenham acesso à tecnologia digital, só 30% das propriedades têm conectividade", comenta. A seguir, os principais pontos da entrevista.

Como a tecnologia tem contribuído para o crescimento do PIB agropecuário?

Celso Moretti – O Brasil tem uma agricultura movida a ciência. A ciência e a tecnologia contribuíram para sairmos de uma situação de importador de alimentos na década de 1970 e sermos hoje um dos maiores players globais neste setor. A tecnologia contribui em vários segmentos, nos palpáveis e não palpáveis. Temos um estudo mostrando que 70% do que produzimos na Embrapa de tecnologia é não tangível. Por exemplo, o manejo de pragas e doenças, dos solos e da água. Do ponto de vista de tecnologia palpável, é 30% do que nós geramos. E é o que normalmente as pessoas enxergam: sementes, máquinas, suplementos agrícolas, raças de animais, sistemas integrados. Agora no nosso aniversário lançamos uma variedade de algodão transgênico resistente a um fungo importante, a ramulária, e ao nematoide-das-galhas. Também lançamos uma soja não transgênica, para mercados que buscam produto convencional e que é resistente à ferrugem asiática e ao complexo de percevejos. Temos uma série de outras tecnologias que contribuem para o crescimento do PIB do agro brasileiro. Uma delas é o bioinsumo Biomaphos, que são duas bactérias do gênero Bacillus que, ao serem colocadas nos solos, disponibilizam o fósforo ali retido, reduzindo a necessidade de adubo. Testamos na safra 2020/21, em 231 áreas de soja no Brasil, e ele contribuiu para aumentar em 4 sacas por hectare o rendimento. Lançamos o Biomaphos em 2019 e ele foi utilizado em 300 mil hectares, principalmente em milho. Na safra 2020/21, 1,5 milhão de hectares e, em 2021/22, nossa previsão é de que chegue a 3 milhões de hectares de grãos.

A pandemia acelerou a adoção de tecnologia por parte de produtores?

Ainda que não tenhamos indicador para medir essa adoção, a resposta é sim. A pandemia acelerou a adoção de tecnologia por parte dos produtores, principalmente na questão da digitalização do agro. Acabamos de lançar o Radar Agtech 2020/21, trabalho feito pela Embrapa em parceria com empresas privadas, no qual vimos que o número de agtechs cresceu 40% no Brasil de um ano para outro. Se tivemos um aumento de 40% no número dessas empresas, é porque com certeza elas estão vendendo tecnologia para os produtores. Outro indicador é o aumento da demanda pelos cursos online na nossa plataforma de ensino a distância. Comparando os dados de 2019 com os de 2020, saímos de 40 mil para mais de 500 mil usuários.

Quais são as prioridades em desenvolvimento de novas tecnologias para este ano?

Em novembro do ano passado lançamos o nosso 7° Plano Diretor. Nesse documento, sinalizamos uma série de prioridades, mas eu destacaria quatro como as principais. Primeiro, o avanço dos sistemas integrados, como a tecnologia de integração lavoura, pecuária e floresta (ILPF). O Brasil já tem 17 milhões de hectares em sistemas de ILPF. O compromisso que a Embrapa faz, com o setor privado, é de que até 2025 vamos chegar a 27 milhões de hectares. A segunda prioridade tem a ver com a questão da agricultura de baixo carbono. Não existe negócio no mundo que não vá ser afetado pela questão da emissão de gases do efeito estufa. A China se compromete a ser uma economia carbono neutro até 2060 e em reduzir em 65% as emissões de gases do efeito estufa até 2030. Isso coloca uma sinalização clara para quem quer fornecer para os chineses, e o nosso agro tem na China um grande cliente. O terceiro ponto é a agricultura digital. No Radar Agtech, vimos que, ainda que a maior parte das empresas esteja no Centro-sul, o Nordeste apresentou crescimento de 40% no número de startups. Isso mostra que as startups ligadas ao agro estão crescendo em todo o Brasil. Então a questão da agricultura digital cada vez mais vai avançar. Vemos o uso de drones, sensores, internet das coisas, visão e simulação computacionais. A Embrapa, junto com a Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, está desenvolvendo um sistema de identificação do focinho dos animais. Isso vai facilitar o manejo no curral, reduzir o estresse dos animais e aumentar a produtividade. Mas tem um enorme desafio que é a conectividade. Ainda que 84% dos produtores tenham acesso à tecnologia digital, ou seja, tenham um celular ou um computador à disposição, só 30% das propriedades têm conectividade. E, por último, mas não menos importante, é toda a questão da bioeconomia. O Brasil é o país que tem a maior biodiversidade do mundo, então temos que começar a explorar mais essa biodiversidade, obviamente de forma sustentável. São essas quatro grandes apostas de visão de futuro que a Embrapa tem. E isso está conectado às demandas das cadeias produtivas.

Essas prioridades anunciadas já influenciaram no trabalho da Embrapa este ano?

Sem dúvida. A unidade de Caprinos e Ovinos, em Sobral (CE), está avançando nos trabalhos de integração lavoura e pecuária na Caatinga, bioma predominante do Nordeste. Na questão da agricultura digital, continuamos lançando os nossos desafios de startups. Na agricultura de baixo carbono, temos trabalhos em andamento com soja, leite, café e algodão. E, na parte dos bioinsumos, lançamos em fevereiro um biopesticida, o Acera, em parceria com o setor privado, que controla a lagarta-do-cartucho para o milho e a falsa-medideira para a soja e o algodão. São prioridades para o futuro, mas o futuro já está acontecendo.

Como a tecnologia pode contribuir para aumentar a produtividade da agricultura e pecuária brasileiras, diante da impossibilidade de crescimento de área expressivo?

Quando a gente fala de aumento de produtividade, se pensarmos no exemplo do Biomaphos, ele propiciou aumento líquido de 4 sacas por hectare de soja com a sua utilização. É uma prova de que a tecnologia eleva a produtividade da agricultura. No caso da pecuária, com o sistema de integração lavoura, pecuária e floresta, é possível produzir carne carbono neutro, que tem valor premium no mercado. E, na mesma área, você produziu uma lavoura e entrou com boi, então isso traz retorno. Tanto na questão da integração de lavoura, pecuária e floresta quanto na de bioinsumos, estamos contribuindo para aumentar a produtividade, a competitividade e a sustentabilidade. Sobre incorporação de novas áreas, alguns números são importantes. Inicialmente, nós utilizamos em primeira e segunda safras 67 milhões de hectares no Brasil em 2020. É importante lembrar que temos algo em torno de 90 milhões de hectares de pastagens com algum grau de degradação. E já mostramos que é possível recuperar pastagem degradada com o uso de ILPF. Então, podemos dobrar a área de produção do Brasil sem avançar sobre a Amazônia e a Mata Atlântica. Nós vamos aumentar a produção de alimentos no Brasil em duas vertentes. Uma é o aumento da produtividade, seja por uso de bioinsumos ou por variedades mais competitivas, e a outra é incorporando na matriz produtiva brasileira as pastagens degradadas.

Qual o papel da tecnologia na redução das emissões de carbono? Depois da carne carbono neutro, quais são os próximos protocolos que estão sendo desenvolvidos pela Embrapa?

Se tem um lugar que está preparado para essa grande demanda mundial por produtos mais sustentáveis, com redução de emissão de carbono, é o Brasil. O nosso Plano ABC, de Agricultura de Baixa Emissão de Carbono, completou dez anos agora. A ministra da Agricultura, Tereza Cristina, lançou o ABC+ este ano, com a participação da Embrapa. A tecnologia está inserida em todo esse processo. Conseguimos a redução da emissão de carbono na agricultura brasileira pelo uso do sistema de plantio direto, quando fazemos o plantio sobre a palha e não revolvemos o solo. Hoje quase 50 milhões de hectares adotam plantio direto. Uma segunda tecnologia é a fixação biológica do nitrogênio. São essas bactérias que sequestram nitrogênio da atmosfera e entregam para a planta. Temos ainda o sistema lavoura, pecuária e floresta, o tratamento de dejetos de animais, as florestas plantadas. A carne carbono neutro é um grande exemplo de uma tecnologia que deu origem a um produto sustentável e diferenciado. Não existem neste momento grandes avanços nos protocolos: os nossos pesquisadores estão mais ajustando as espécies animais e florestais, o tempo de permanência em um e outro sistema. Mas temos novidades vindo aí. Neste ano, lançamos o programa soja de baixo carbono. A soja brasileira é de baixo carbono porque utiliza plantio direto, fixação biológica do nitrogênio e, em alguns lugares, também está vinculada com pecuária e floresta. Já lançamos o selo da soja de baixo carbono e esperamos, até 2022, em parceria com o setor produtivo, colocar isso no mercado. O leite é a outra cadeia em que estamos iniciando trabalhos. Temos uma parceria com a Nestlé, mas vamos avançar para outras empresas do setor de lácteos. Estamos desenvolvendo calculadoras para produção do leite de baixo carbono específicas para os diferentes sistemas, a pasto e confinado. Um terceiro produto para o qual já iniciamos os trabalhos é o café de baixo carbono. Tivemos resultados interessantes neste ano com o consórcio de café com braquiária. E, nos últimos 60 dias, iniciamos o trabalho com o algodão de baixo carbono. Recebemos uma demanda da Abrapa (Associação Brasileira de Produtores de Algodão), porque o Brasil é um dos maiores exportadores de fibra de algodão no mundo e os nossos competidores, os EUA e a Austrália, já estão trabalhando na questão do algodão de baixo carbono. Temos um conjunto de unidades atuando nisso e vamos avançar nessa agenda.

No ano passado, a Embrapa anunciou a meta de dobrar, até 2023, o número de usuários de aplicativos e sistemas digitais gerados pela empresa. Já tem algum avanço e o que vocês esperam para os próximos anos?

Para 2020, a empresa previu um aumento de 8% ante 2018 e alcançou um incremento de 51%, para 11.497.191 usuários. Dessa forma, a meta foi atingida já no ano passado. A linha de base do indicador foi construída a partir de uma amostra de 36 tecnologias, entre aplicativos e sistemas digitais, que fizeram parte do Balanço Social da Embrapa de 2018, quando o número de usuários foi de 7.589.927. A Embrapa vem trabalhando para aumentar o número de tecnologias oferecidas à sociedade. Em 2020, chegamos a 57. Também, em função da pandemia, a busca por interação e serviços digitais aumentou. Para 2021, a previsão é de um crescimento de 12% no número de usuários em relação a 2018, para 2022, de 16%, e, para 2023, de 20%. A parceria com as agtechs e a oferta de cursos EAD são maneiras também de divulgar as nossas soluções digitais.

Qual é a previsão de orçamento da Embrapa para este ano? Quanto disso vai para pesquisa?

Neste ano, o orçamento da Embrapa é de aproximadamente R$ 3,2 bilhões. Nós tivemos uma redução de R$ 350 milhões quando comparado ao ano passado, porque concluímos o plano de demissão incentivada. Não fazemos essa separação do que vai para pesquisa, pessoal e custeio, porque todo recurso, do pagamento do motorista até o do pesquisador, o pagamento da energia elétrica, do combustível, do adubo, é investimento em pesquisa. Esses recursos ainda dependem de negociações de projetos de lei do Congresso Nacional. Mas a ministra tem nos dado um apoio enorme. E a nossa previsão é de que não vamos ter dificuldade de ter recursos que precisamos este ano para fazer o que é necessário e importante.

Gargalo para avanço da tecnologia no campo é a falta de conectividade, reconhece Moretti

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