Título: A ruína do PT
Autor: Fabiano Santos*
Fonte: Jornal do Brasil, 13/08/2005, Idéias, p. 2

O presidente Lula foi eleito com o claro compromisso de promover o crescimento da economia em bases sustentáveis, com ênfase na questão do emprego, além de propor e implementar um vigoroso programa de combate à pobreza e à desigualdade. Pode-se dizer que, como em qualquer governo, alguns resultados se aproximam e outros se afastam dos objetivos colimados. O crescimento econômico foi, de fato, restaurado depois de um primeiro ano de ¿arrumação da casa¿, mas o emprego continua sendo uma preocupação para boa parte dos brasileiros. A pobreza recebe, é bem verdade, tratamento privilegiado através de um programa inovador e que, após adaptações e problemas de concepção e realização, começa a produzir efeitos significativos na incorporação de indigentes e miseráveis à vida social. Contudo, a desigualdade tem demonstrado o quanto é resistente e refratária. Até aí tudo bem ¿ temos sido governados por uma administração razoável em algumas partes, boa em outras, ruim em várias dependendo do gosto do freguês, suas inclinações, interesses e ideologia. A política brasileira, todavia, é ditada por uma pergunta muito simples: o presidente chegará ou não até o final do mandato? Seria ou não justificado jurídica e politicamente o processo de impedimento contra o chefe do Executivo? Haverá condições políticas para o exercício do governo dada a gravidade das denúncias e as pressões que delas derivam? Difícil responder. Mais fácil é a análise do contexto político que ensejou a crise e suas implicações para o processo de democratização no país.

A crise possui pelo menos três dimensões fundamentais: 1) em primeiro lugar, o conflito político-partidário que se desenvolve no Congresso; 2) em segundo lugar, o conflito no interior da base de apoio ao governo; e 3) o conflito no interior do partido do presidente.

A observação do processo político em outras partes do mundo indica, ao contrário do que supôs durante boa parte da década dos 90 os teóricos liberais e de esquerda, encantados alguns, desanimados outros pelo fenômeno da globalização econômica, uma acentuação da clivagem entre conservadores e trabalhistas, liberais e social-democratas, direita e esquerda. Seja nos EUA, com a polarização entre republicanos e democratas, seja no parlamento europeu, com a divisão dos ¿grupos partidários¿ entre liberais e social-democratas, seja na América do Sul com a emergência dos socialistas no Chile, com o Frente Ampla no Uruguai e o PT no Brasil, o fato é que as divergências no que tange à base social, os interesses e idéias dos partidos posicionados à direita e esquerda do espectro político só têm se aprofundado. Inúmeros analistas e políticos brasileiros insistem em olhar apenas para a política monetária e a partir daí, verificando a convergência no tratamento da política cambial e de juros, concluir que não existem diferenças significativas entre os interesses e a coalizão social dos que apóiam o governo Lula e dos que lhe fazem oposição. Entretanto, sem considerar tais diferenças, não conseguimos entender as motivações e estratégias dos partidos de oposição, notadamente, PSDB e PFL. Não se iludam os oposicionistas de esquerda e da centro-esquerda, a disputa política atual também envolve projetos políticos alternativos ¿ de uma lado, o PT e aliados, tais como o PC do B e PSB, privilegiando o setor público como mecanismo propulsor dos investimentos em infra-estrutura e formação de capital físico e humano; de outro lado, tucanos e pefelistas desejosos de transferir para o setor privado e o mercado a responsabilidade de financiar os investimentos necessários para uma nova etapa de desenvolvimento nacional. CPIs para a oposição são um instrumento de combate político, combate que tem em sua raiz uma disputa pelo poder de definir as políticas de distribuição e redistribuição de recursos e incentivos administrados pelo estado.

O segundo tópico refere-se aos conflitos no interior da base de sustentação do governo. Ao contrário do que se passou em boa parte do governo FHC, apoiado por um número reduzido de partidos, coesos em torno do projeto de reformas estruturais pró-mercado e mantendo sob controle as comissões e postos de comando no Congresso, Lula administra um conjunto grande e heterogêneo de atores partidários. Além disso, herda uma agenda de problemas cujo enfrentamento divide aliados e a seu próprio partido. Partidos como PL, PTB e PP, de força intermediária e lutando com todos os meios para sobreviver dado o espectro da reforma política, acabaram disputando espaço no espólio ministerial com atores tão diversos quanto o PT, o PSB, PC do B e, num primeiro momento, PDT, PPS e PV. Métodos e concepções tão diversos acabaram por dificultar o trabalho de coordenação da base, surpreendido sistematicamente com denúncias, ¿fogo amigo¿ e derrotas no plenário e comissões congressuais.

Por último, os conflitos no interior do próprio PT. Durante uma década o equilíbrio partidário foi alcançado graças à delegação de funções e tarefas para um pequeno grupo de lideranças que, a despeito de ouvirem e respeitarem o debate interno, aumentou paulatinamente a autonomia para agir e decidir em nome do partido, processo que acabou por eliminar toda e qualquer prestação de contas à base partidária dos atos e decisões tomadas nas esferas eleitoral e governamental. A presunção de controle da maioria nas instâncias de decisão justificou na imaginação dos líderes a definição de estratégias e condutas ao arrepio das mais elementares regras de transparência e distribuição de informação. Burocratização precoce, profissionalização e oligarquização da direção partidária tornaram-se o símbolo da gestão petista que acaba de ser substituída. Como pano de fundo do processo um conflito genuíno em torno da verdadeira vocação do partido ¿ em nenhum momento ficou consagrado para os militantes como um todo que o PT é um partido social-democrata que defende, como seus pares em outras partes do mundo, a atuação do setor público na vida econômica como forma de atenuar os efeitos desagregadores do mercado. Em nenhum momento ficou decidido pelo conjunto dos militantes que a transformação do capitalismo não pode ser a bandeira de um partido que quer conquistar a confiança do eleitor de centro, da classe média ¿ esta, dependendo das circunstâncias, acompanha a social-democracia, mais do que isso é exigir demais. Na falta de um projeto e visão clara do que fazer nas eleições e no governo, a delegação sem prestação e contas para os melhores estrategistas foi a decisão de equilíbrio que se revelou insustentável ao longo do tempo.

O que fazer, o que pensar? A ruína do governo Lula e do PT não é interessante para o país, e é péssimo para a democracia. Apesar de todas as ambigüidades e contradições, o PT e o governo vêm dando substância ao que parece ser a possibilidade de estruturação do conflito partidário no capitalismo em desenvolvimento. Contudo, é também verdade que os mecanismos de transparência e controle do exercício do poder vêm se aperfeiçoando e emitindo sinais inequívocos de que comportamentos e estratégias desviantes perdem cada vez mais espaço em nossa república. Por outro lado, algum saldo positivo da crise deverá surgir, independentemente do destino do presidente e atuais lideranças do PT ¿ digamos assim, a partir de agora os políticos deverão acomodar suas ações no governo e nas eleições de forma a que seu desiderato de maximizar e acumular poder não se tornem a causa da desestruturação do projeto democrático brasileiro.

* Professor e pesquisador do Iuperj/Ucam