Título: Ambição do Brasil irrita argentinos
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Fonte: Jornal do Brasil, 03/05/2005, Internacional, p. A7

Presidente Néstor Kirchner se diz ''cansado dos entraves econômicos e da liderança que Lula quer ter na região''

Na visita a Washington no fim de semana, o ministro das Relações Exteriores da Argentina, Rafael Bielsa, fez mais do que passear. Estava incomodado com o papel de potência regional do Brasil, aclamado pela secretária de Estado dos EUA, Condoleezza Rice, e reiterado ontem pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em Brasília. Bielsa convocou seis embaixadores peronistas de grande experiência para discutir a agenda exterior e, em particular, um endurecimento em relação ao vizinho. De acordo com o jornal Clarín, o que está em jogo é a aliança estratégica bilateral que, além das declarações de princípios, nunca foi concretizada.

- O presidente Néstor Kirchner está cansado dos entraves econômicos brasileiros, da falta de apoio à Argentina do governo de Brasília em relação ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e também da liderança que o presidente Lula quer assumir na região - afirmou uma fonte da Chancelaria, acrescentando que ''até Rice colocou um freio em Lula, quando disse que os EUA não precisam de uma mediação do Brasil na relação com a Venezuela''. A intenção de intermediação foi negada pelo Planalto. E, em Washington, o Fundo afirmou que o Brasil é um dos mais fortes defensores da Argentina nas reuniões da dívida.

A gota d'água da crise foi a iniciativa do Itamaraty de mediar a crise equatoriana via Comunidade Sul-americana de Nações (CSN), apesar de ser, segundo Kirchner, atribuição da Organização dos Estados Americanos (OEA) - até ontem acéfala. Bielsa foi convidado pelo ministro das Relações Exteriores do Brasil, Celso Amorim, a seguir na missão da CSN como presidente pro tempore do Grupo do Rio, com chanceleres de Peru e de Bolívia. Recusou.

- Houve falta de inteligência - reconheceu ao Clarín o porta-voz da chancelaria, Oscar Feito, que participou das reuniões de Washington.

O papel da CSN parece ser o mais questionado. Kirchner sequer assistiu à criação da organização, em Cuzco (Peru), em dezembro. De acordo com a fonte, o presidente - ao contrário de seu antecessor, Eduardo Duhalde -, crê que o Brasil usa a confederação para ampliar seus interesses.

Além disso, Kirchner nunca teve uma boa relação pessoal com Lula. Acha que o governo brasileiro está tentando ocupar todos os cargos disponíveis nos organismos internacionais. A projeção obtida pela agressiva agenda de política externa, que deu a Lula (e ao país) uma imagem planetária, contribuiu para acelerar esse desagrado.

''Se há um lugar na Organização Mundial do Comércio, o Brasil quer, se há um na ONU, o Brasil quer, se há um na Organização da ONU para a Alimentação e a Agricultura (FAO), o Brasil quer. O Brasil quis até eleger um papa'', teria dito Kirchner, segundo a fonte.

Confrontado em Brasília, o chanceler Celso Amorim classificou a informação como ''especulação'' e disse que a relação é boa. Há ''diferenças de abordagens'', mas ação semelhante, sobretudo na área comercial.

- Apoiamos as causas argentinas. Nos incomodou, por exemplo, ver um mapa da União Européia no qual as Malvinas são parte da UE. Vamos ver como a América do Sul pode reagir. Sempre buscamos uma solução pacífica - disse.

Ao contrário do que afirmara Lula, Amorim negou que o Brasil queira a liderança.

- Não podemos deixar de fazer o que tem de ser feito no interesse do país, sem ofender ninguém, e no interesse da região. Tudo em consulta com a Argentina e com outros países. Há muita fumaça, mas nada que nos preocupe - completou.

Ainda segundo o Clarín, a maioria dos diplomatas argentinos, embora não simpatizem com Kirchner, concorda com o ''freio'' que o país quer colocar nas ambições do vizinho. Uma visão, por sinal, histórica e que vem desde a II Guerra, quando a industrialização brasileira ganhou impulso. Mas segundo o embaixador argentino na OEA, Rodolfo Gil, não haverá ofensiva contra Brasília, mas avaliação das relações inclusive com outros países latinos e os EUA.

- Estaria mal focado se pensássemos em endurecer ou não a relação com Brasil - declarou Gil. - Não podíamos nos reunir para falar da região, do mundo, da pós-moratória, no âmbito internacional, sem citar o Brasil.

Mas o próprio Bielsa deixou claro ontem que há ruído na sintonia com Brasília. Sem mencionar o país, advertiu que se registra um ''déficit institucional'' no Mercosul, bloco regional integrado por ambos, junto com Paraguai e Uruguai.

- A solução disso é a nossa prioridade, antes da CSN.

Kirchner ainda não confirmou a vinda ao Brasil, que entre 10 e 11 de maio abriga a Cúpula árabe-sul-americana. O presidente argentino é um dos 33 chefes de Estado convidados para o encontro, na capital. Em novembro, já tinha faltado à reunião do Grupo do Rio, alegando ''compromissos inadiáveis em Buenos Aires''. Mas jornais locais estamparam fotos do presidente com estudantes que visitavam a Casa Rosada.