O Estado de S. Paulo, n. 46582, 01/05/2021. Espaço Aberto, p. A2

Estado laico

Marcelo de Azevedo Granato 


Estado laico é o que não adota ou apoia uma confissão religiosa, qualquer que seja. Um Estado laico, portanto, não emprega sua força, seu poder de polícia, para fazer cumprir as regras de uma religião; ele cultiva a diversidade de opiniões, crenças e opções provenientes do laikós, ou seja, dos indivíduos em geral, que, na tradição cristã, são os que não pertencem ao clero. No Estado laico, os indivíduos não estão sujeitos à direção espiritual do clero.

Isso não significa, absolutamente, que as religiões não tenham lugar num Estado laico. O Estado laico não é ateu, é simplesmente neutro em matéria religiosa. Por isso mesmo, um Estado laico considera “inviolável a liberdade de consciência e de crença”, assegura “o livre exercício dos cultos religiosos” e garante, “na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias” (artigo 5.º, inciso VI, da Constituição federal).

A discussão sobre a laicidade do Estado brasileiro foi retomada com o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n.º 701, relativa à proibição de celebrações religiosas presenciais por motivos ligados à prevenção da covid-19. Na véspera da Páscoa, o ministro Kassio Nunes Marques concedeu medida cautelar autorizando a realização dessas celebrações sob as condições fixadas em sua decisão (presença limitada a 25% da capacidade do local, “janelas e portas abertas, sempre que possível”, etc.).

Diante da repercussão dessa decisão – duramente criticada no meio jurídico –, agravada por decisão em sentido oposto do ministro Gilmar Mendes, o caso foi rapidamente levado ao plenário do Supremo. Antes do seu julgamento pelos ministros, o advogado-geral da União, André Mendonça, fez sua sustentação oral. Centrado em aspectos religiosos, Mendonça afirmou que “os verdadeiros cristãos” estariam “sempre dispostos a morrer para garantir a liberdade de religião e de culto”. Na fala do advogadogeral da União, a religião emerge como valor supremo dos cristãos, pelo qual estariam dispostos a dar a própria vida (e, deduz-se, a eventualmente contaminar terceiros).

De início, chama atenção o fato de que o advogado-geral não tem por função falar em nome dos cristãos. Ainda mais porque a decisão de Kassio Nunes Marques se voltou para “cultos, missas e reuniões de quaisquer credos e religiões”.

A par disso, a fala de Mendonça sobre o valor da religião e sua prática impõe ressaltar que num Estado laico e democrático, como o Brasil, nenhum valor é absoluto; a cada um de nós é conferida a liberdade de adotar os próprios valores (e opiniões, crenças, etc.), respeitada a mesma liberdade dos demais.

Laicidade e democracia são verdadeiros métodos de convivência; métodos que não têm um conteúdo predeterminado, não se orientam por “verdades”, justamente porque se pautam pela persuasão, pelo diálogo de indivíduos que “são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” (artigo 5.º da Constituição federal). Essa igualdade independe do fato de termos características, opiniões, opções ou crenças que nos diferenciam uns dos outros. A todas as nossas diferenças, que tornam cada um de nós pessoas únicas, a Constituição atribui o mesmo valor jurídico.

Assim, não importa que, como constou da decisão de Kassio Nunes na ADPF 701, “mais de 80% dos brasileiros” se tenham declarado cristãos no Censo de 2010. Num Estado laico, os direitos não são funções da vontade da maioria. Da mesma forma, nas democracias não é a aplicação da regra da maioria que torna democrática uma decisão. A regra da maioria é um expediente pelo qual pessoas com opiniões diferentes chegam a uma decisão coletiva. O que torna democrática uma decisão é a participação direta ou indireta de todos os membros da comunidade no processo de decisão.

Sendo assim, os grupos religiosos devem ter voz na sociedade, mas a sociedade não pode ter por voz os preceitos de uma religião, qualquer que seja. É o que resulta do artigo 19, inciso I, da Constituição federal, que veda à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios não só “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento”, mas também “manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança”, ressalvada a colaboração de interesse público “na forma da lei”.

É o que também resulta do Direito Internacional. Tanto o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966) quanto a Convenção Americana de Direitos Humanos (1969) atribuem status elevado à liberdade religiosa, mas autorizam limitações legais “que se façam necessárias para proteger a segurança (...) a saúde (...) ou os direitos e as liberdades das demais pessoas” (artigos 18 do pacto e 12 da convenção).

Em suma, ao Estado laico cumpre a defesa da ordem social – em sua pluralidade –, e não a de uma específica visão global de mundo, religiosa ou não.

Doutor em Direito Pela USP e pela Università Degli Studi di Torino, integrante do Instituto Norberto Bobbio. É Professor da FACAMP