Correio Braziliense, n. 21432, 20/11/2021. Economia, p. 8

Ganho real preservado

Rosana Hessel


Enquanto a inflação oficial ultrapassa 10% e corrói, cada vez mais, o poder de compra dos brasileiros, a diferença entre as remunerações dos trabalhadores do setor privado e do funcionalismo público não para de crescer — e deve aumentar ainda mais se houver um novo reajuste no ano que vem, conforme as promessas do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

De acordo com levantamento feito pela economista Ana Tereza Pires, pesquisadora da consultoria IDados, a pedido do Correio, os ganhos dos servidores públicos cresceram 8%, em termos reais (acima da inflação) entre o primeiro trimestre de 2012 e o segundo trimestre de 2021. Enquanto isso, os trabalhadores com carteira assinada não tiveram ganho real algum, pois a renda média caiu 0,1% no mesmo período, segundo os cálculos da especialista.

“Enquanto os trabalhadores do setor privado não tiveram nenhuma correção, em termos reais, na renda, os servidores tiveram um ganho expressivo acima da inflação média no período, de 69,4%”, explicou. “O trabalhador do setor privado tem muito pouco poder de barganha, enquanto os servidores têm reajustes quase que automáticos. E, se a conjuntura econômica continuar ruim como atualmente, com desemprego elevado, inflação alta e pouco crescimento na economia, a tendência é que esse desequilíbrio fique maior”, destacou a economista.

Conforme dados do Banco Mundial, o salário médio dos servidores é 96% superior à média dos rendimentos dos trabalhadores do setor privado. Esse indicador é de 2018, mas analistas reconhecem que o quadro atual tende a ser pior. Os números levantados pela especialista do IDados mostram que a quantidade de servidores nas três esferas de governo diminuiu 13% entre 2012 e 2019, mas os ganhos do setor público cresceram 8% entre os trabalhadores com carteira e 16%, entre os sem carteira. Já no setor privado, conforme a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), os reajustes salariais, em setembro, ficaram 1,9% abaixo da previsão de inflação para o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), de 10,4% em 12 meses.

Os dados do Painel Estatístico de Pessoal (PEP), do Ministério da Economia, também mostram um quadro preocupante do ponto de vista das contas públicas, e vão na contramão das afirmações do ministro da Economia, Paulo Guedes, de que o congelamento dos salários dos servidores por dois anos deve gerar uma economia de R$ 150 bilhões para os cofres públicos nas três esferas de governo. O painel mostra que o gasto mensal do governo federal com os servidores ativos e inativos cresceu quase 5% em relação ao período pré-pandemia, apesar da redução de 35 mil vagas entre 2019 e 2021.

O painel mostra que o custo em outubro de 2019, com a folha de pouco mais de 1,2 milhão de pessoas, era de R$ 24,1 bilhões e passou para R$ 25,4 bilhões, no mesmo intervalo do ano passado, e para R$ 25,3 bilhões, em outubro deste ano.

“A pandemia mudou pouco essa situação de desigualdade. A crise ainda reduziu mais os salários dos trabalhadores do setor privado em algumas áreas enquanto o setor público manteve a renda constante e ainda não teve redução de despesa apesar da redução no número de servidores”, destacou Daniel Duque, especialista em mercado de trabalho e pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre). Ele ressaltou que o Brasil tem um número pequeno de servidores que custam muito caro para o governo, em comparação a outros países desenvolvidos. “Existem cerca de 10 milhões de servidores em todo o país, mas a renda per capita do funcionalismo está acima da média de economias ricas que sequer concedem estabilidade no emprego como no Brasil”, afirmou.

Especialistas lembram que um reajuste linear para o funcionalismo também não corrige as discrepâncias entre as remunerações dos servidores, cujo teto de R$ 39,2 mil nem sempre é respeitado. Alguns privilegiados recebem supersalários ou até mesmo têm, agora, teto duplex — recentemente instituído pelo Ministério da Economia para servidores civis e militares aposentados que continuam na ativa. “Aumentar linearmente os salários não ajuda a melhorar a qualidade do serviço público. É preciso arrumar ferramentas de remuneração que melhorem a produtividade do setor público”, defendeu Daniel Duque.