O Globo, n. 31609, 21/02/2020. País, p. 4

Tensão disseminada

Cleide Carvalho
Thais Arbex
Naira Trindade
André De Souza
Carolina Brígido
Marlen Couto
Miguel Caballero


O ato de policiais militares no Ceará que culminou com o senador Cid Gomes (PDT) baleado expôs o aumento de casos de governos estaduais pressionados a negociar salários e planos de carreira de profissionais da Segurança Pública. Além do Ceará, em ao menos outros dez estados há pedidos de reajuste de trabalhadores do setor. Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e parlamentares da cúpula do Congresso veem com apreensão a série de levantes de policiais e avaliam que é preciso conter o que consideram ser uma “escalada autoritária”.

O presidente Jair Bolsonaro assinou ontem um decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) para que as Forças Armadas possam atuar na segurança cearense até a sexta-feira da semana que vem, período que abrange o carnaval. Uma leva de homens da Força Nacional de Segurança já desembarcou no estado.

Os ministros do STF Alexandre de Moraes e Ricardo Lewandowski classificaram ontem os protestos no Ceará como inconstitucionais. Já Bolsonaro, ao comentar a crise, aproveitou para defender novamente a aprovação no Congresso do excludente de ilicitude para que militares que atuam em operações de GLO não sejam responsabilizados criminalmente:

— É irresponsabilidade nós continuarmos fazendo essa operação sem dar a devida garantia a esses integrantes das Forças Armadas.

Logo após Cid Gomes ser baleado em Sobral, políticos e magistrados passaram a repetir a tese de que governadores podem perder controle sobre as tropas estaduais. Para ministros e parlamentares ouvidos pelo GLOBO, o episódio ganha ainda mais importância por ter ocorrido em meio à tensão entre governadores e o presidente, e ao novo embate entre o Congresso e o Planalto. O risco de um efeito cascata dos motins pelo país também fez a cúpula do Judiciário incentivar um raio-X da situação das polícias. A ideia é identificar possíveis focos de conflitos.

Politização da segurança

Para o professor do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará Luiz Fábio Paiva, as negociações expõem a “politização” da Segurança e o aumento do poder de pressão da categoria. O tema, avalia, passou a ser visto como ativo eleitoral após o bom desempenho de candidatos eleitos em 2018 com foco na área, a exemplo de Bolsonaro:

— A leitura da classe política é que a polícia rende voto. Um presidente se elegeu com um discurso pró-polícias, assim como a bancada da bala. Vários grupos dentro da polícia entenderam isso — avalia.

Em Minas, o governador Romeu Zema (Novo) atendeu às reivindicações dos trabalhadores da Segurança e propôs à Assembleia Legislativa do estado reajuste de 41,7% em três parcelas anuais — o custo chega a R$ 9 bilhões. Na Paraíba, policiais militares, civis e bombeiros pedem reajuste de 24% e paralisaram as atividades por 12 horas na quarta-feira passada.

Em Alagoas, a Polícia Civil promete paralisar as atividades na quarta-feira de cinzas, quinta e sexta-feira. No Rio e em São Paulo, os governadores Wilson Witzel (PSC) e João Doria (PSDB) enfrentam doses de insatisfação e críticas desde 2019. Há negociações salariais em curso em estados como Pernambuco, Bahia, Rio Grande do Sul e Santa Catarina.

Analítico: reajuste de Zema abala discurso do Novo e incentiva paralisações

O aumento salarial de 41% proposto pelo governador de Minas Gerais, Romeu Zema, aos servidores da área de Segurança embute dois riscos importantes, além de ceder à pressão da categoria. Politicamente, é um tiro no pé da identidade de seu partido, o Novo, cuja principal bandeira é a redução do Estado e o máximo controle fiscal. Ao assumir Minas em crise financeira, o Novo abandona o próprio programa. Zema candidata-se ainda a ilustrar a melhor definição da máxima política de que “fazer oposição é uma coisa, governar é outra”.

O segundo risco é mais abrangente, e o alarme soa em todos os outros estados. Greves ilegais de agentes de segurança não são novidade num país que em geral remunera mal servidores que arriscam a vida no trabalho. Embora proibidos, os atos historicamente recebem a anistia do Poder Legislativo e da Justiça. Com a eleição de Jair Bolsonaro, mais neopolíticos egressos das fardas chegaram às casas legislativas. A luta corporativista de policiais e militares encontra hoje um ambiente ineditamente favorável.

A expressiva vitória das categorias militares na aprovação de um regime especial da Previdência foi um sinal de empoderamento dessas causas. Quando o governador de um estado em crise cede um reajuste tão desproporcional aos benefícios dos outros servidores, esse sinal se fortalece.

Policiais capazes de sair pelas ruas encapuzados, armas em punho, obrigando o comércio a fechar as portas, como ocorreu em Sobral, onde o senador Cid Gomes foi baleado, não precisam de estímulos para pôr as autoridades estaduais contra a parede. Mas a capitulação de Zema deixa seus colegas governadores mais fragilizados.

Aumenta o perigoso espaço para o discurso oportunista da categoria que tem a prerrogativa de usar armas de fogo. Se Minas, à beira da falência, quer dar 41% de reajuste, por que se contentariam com menos na Paraíba, em São Paulo ou no Mato Grosso?

Opinião do GLOBO: UTI

O governador de Minas, Romeu Zema, deu de bandeja a imagem: um político do Novo toma velhas atitudes. Na contramão de tudo o que o partido prega, Zema concedeu exorbitante aumento salarial (41,7%) à área de segurança. E os deputados estaduais, que entendem do assunto, ampliaram o presente a outras categorias.

Ainda não se sabe o que aconteceu com Zema. Talvez nem seu partido saiba. Importa é que se as finanças mineiras estavam na antessala da UTI, agora terão de ser ligadas aos aparelhos do Tesouro Nacional. A ver o que o Tesouro exigirá em troca.

Cid Gomes deixa UTI e é transferido para Fortaleza

O senador Cid Gomes (PDT-CE), atingido por dois tiros na última quartafeira em um ato de policiais, deixou a Unidade de Terapia Intensiva (UTI) na manhã de ontem, segundo boletim médico divulgado pelo Hospital do Coração de Sobral. Durante a tarde, o senador foi transferido em um helicóptero para um hospital particular de Fortaleza.

O parlamentar tentou furar um bloqueio de policiais amotinados em um quartel de Sobral, no Ceará, quando foi atingido pelos disparos. No boletim médico divulgado ontem, o diretor técnico do Hospital do Coração, Joaquim David Carneiro Neto, afirmou que Cid evoluiu sem intercorrência nas últimas horas, com padrão respiratório normal. “Não mais necessitando de cuidados de terapia intensiva, recebendo, portanto, alta para a enfermaria”, informou o médico.

O hospital divulgou nas redes sociais um vídeo que mostra o senador na UTI. Na gravação, Cid agradece à equipe médica e aparece com curativos na região torácica, onde foi atingido pelos tiros. “Saio daqui sem necessidade de cuidados intensivos e posso ser transferido para um quarto”, afirmou.

Opinião do GLOBO: afronta

Movimento sindical com agentes armados, como ocorre na greve dos policiais no Ceará, é inaceitável.

O STF já decidiu que policiais militares e civis não podem fazer greve.

Mas a decisão da Corte é desrespeitada, e nada acontece. Quando acontece, punições são anistiadas nas casas legislativas, e fica tudo como está. O resultado é o que se vê.