O Globo, n. 31445 , 10/09/2019. Opinião, p. 2

A necessária reação do STF à censura


O Supremo Tribunal Federal tem se notabilizado na devida intransigência em defesa dos dispositivos constitucionais que garantem as liberdades civis, em que se destacam a de expressão e a de imprensa. Ao mesmo tempo, a Corte mostra-se aberta à evolução dos costumes e aos desafios que se colocam no avanço da ciência — o exemplo é a a provação das pesquisas com células embrionárias, sob condições. Neste caso, o STF de alguma maneira reafirmou a laicidade do Estado brasileiro.

A decisão do prefeito do Rio, Marcelo Crivella, anunciada na quinta feira, de despachar fiscais para a Bienal do Livro, no Rio centro, afim de recolher uma publicação supostamente para “proteger nossas crianças”, teve a necessária resposta do Supremo Tribunal, acionado pela Procuradora- Geral da República, Raquel Dodge.

O que atrai a ira censória é uma história em quadrinhos de heróis da Marvel em que há acena de um beijo gay. Pode chocar o bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), mas não deveria espantar o prefeito do Rio, uma cidade aberta.

Pode ser que não passe de estratégia político- eleitoral, voltada à tentativa de reeleição, para dar ordem unida ao seu rebanho de conservadores, mas isso não importa do ponto de vista da Constituição, agredida por um ato de censura, seja qual for sua origem.

A reação do ministro Dias Toffoli, presidente da Corte, seguida por Gilmar Mendes, e acompanhada por Celso de Mello, em nota enviada à “Folha de S.Paulo”, serviram para reafirmar o peso dos balizamentos estabelecidos pela Constituição.

A nota de Celso de Mello, decano do Supremo, pontilhada por algumas exclamações, ressalta que “(...) sob o signo do retrocesso, um novo e sombrio tempo se anuncia: o tempo da intolerância, da repressão ao pensamento, da interdição ostensiva ao pluralismo de ideias e do repúdio ao princípio democrático!!!”

Algumas tentativas de censura têm sido feitas com base no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Aconteceu neste caso do livro — que gerou um embate de liminares contra e a favor no âmbito do Tribunal de Justiça fluminense —, mas o encaminhamento foi rebatido por Dias Toffoli. A imagem do beijo entre dois homens (ou mulheres) não viola o Estatuto.

O ministro lembrou ainda que, em 2011, o Supremo reconheceu o direito de pessoas do mesmo sexo terem uma união estável perante a lei. Gilmar Mendes, por sua vez, determinou que o alvará da Feira não fosse cassado, como ameaçara Crivella, registrando que a iniciativa do prefeito tem o “nítido objetivo de promover a patrulha do conteúdo de publicação artística”. São animadoras essas demonstrações da Corte na defesa de valores vitais a uma democracia. Ajuda, neste momento de tensões político ideológicas.