O Globo, n.31.580, 23/01/2020. Rio. p.10

Números e realidade
Rafael Nascimento de Souza 
Marcos Nunes 


 

A milícia está mascarando os índices de criminalidade em Santa Cruz, na Zona Oeste do Rio. A afirmação foi feita ontem pelo Ministério Público estadual, um dia após o Instituto de Segurança Pública (ISP) divulgar as estatísticas da violência do Rio em 2019. O balanço aponta uma queda em vários tipos de ocorrências no bairro, que, de acordo com investigações, está tomado por grupos paramilitares. Um dos maiores bairros do Rio, Santa Cruz viu o total de homicídios cair de 99 em 2018 para 46 no ano passado, queda de 53,54%, a maior dentro da cidade do Rio. As mortes em confronto também despencaram de 26, em 2018, para 3, em 2019.

— Grupos de milicianos vêm controlando Santa Cruz desde 2018, quando traficantes da Favela de Antares foram expulsos. Hoje, toda a região está dominada por eles — disse o promotor Luiz Antonio Corrêa Ayres, da 20ª Promotoria de Justiça de Investigação Penal da Primeira Central de Inquéritos.

Ayres, que foi responsável pela condução de vários inquéritos em Santa Cruz e Campo Grande, afirmou que regras impostas por paramilitares acabam por influenciar índices de crimes.

Ontem, uma equipe do GLOBO percorreu ruas de Santa Cruz por quase cinco horas. Nesse período, encontrou apenas uma viatura da PM — parada em frente à estação do BRT na região central do bairro. Apesar disso, os roubos a pedestres despencaram: foram 894 casos no ano passado, contra 1.595 em 2018, ou seja, houve uma redução de 43,9%.

— A ordem é não roubar. Os milicianos ganham mais praticando outros crimes — disse um comerciante, que pediu anonimato.

Outros tipos de crimes também diminuíram. Houve uma redução expressiva de casos de encontro de cadáver. Em 2018, foram 35 ocorrências. No ano passado, quatro, e foi justamente em 2019 que a Polícia Civil intensificou uma investigação sobre cemitérios clandestinos usados pela milícia na região.

Outro dado chama a atenção: a queda na apreensão de armas. Em 2018, o 27º BPM (Santa Cruz) apreendeu 19 fuzis. No ano seguinte, apenas dois. Quando se fala em apreensões de pistolas, a queda é ainda mais significativa. Em 2018, foram recolhidas 61. Em 2019, menos da metade, 25.

— Nos números, Santa Cruz está menos violenta porque os milicianos escondem todos os tipos de crimes que praticam — afirmou um lojista que diz ser obrigado a pagar uma taxa de segurança de R$ 200 mensais.

MEDO DE DENUNCIAR

Enquanto alguns crimes diminuem, outros aumentam. Segundo o ISP, subiu de 44 (em 2018) para 52 (em 2019) o número de casos de extorsão no bairro. E fontes da Polícia Civil reconhecem que muitas pessoas não denunciam essa prática.

— Esses grupos paramilitares são bem orquestrados e sabem como esconder provas. As pessoas não denunciam os crimes porque se sentem coagidas, amedrontadas. Isso pode explicar essa redução de todos os crimes. A milícia preocupa e está se expandindo por toda a Zona Oeste e para a Baixada Fluminense — disse o delegado Ronaldo Oliveira, consultor em segurança.

Atualmente, a milícia tomou conta de todas as comunidades de Santa Cruz. Com a ajuda de uma facção do tráfico, paramilitares expulsaram bandidos que controlavam as comunidades do Rola, de Antares e do Aço.

O GLOBO pediu à Polícia Militar uma entrevista com o coronel Wagner Moretzsohn, comandante do 27º BPM (Santa Cruz), mas a assessoria da corporação informou que ele não foi autorizado a falar com a reportagem. A PM não respondeu aos questionamentos feitos pelo jornal.


Especialistas: não há relação entre polícia letal e queda de homicídio


Uma análise dos dados da criminalidade no ano de 2019 mostra que a queda recorde no número de homicídios no Rio, a maior desde 1991, nada tem a ver com a escalada das mortes em confrontos policiais que aterrorizam a população. Para especialistas, o avanço da milícia ainda é o melhor caminho para entender o atual quadro de violência do estado.

O GLOBO cruzou dados de mortes por intervenção de agentes do estado com os de homicídios. Nos cinco bairros que tiveram mais casos de pessoas mortas em confrontos no ano passado — Bangu, Ilha do Governador, Niterói,

Praça da Harmonia e Tijuca —, o homicídio subiu em um deles e, em outro, o total foi o mesmo de 2018. Ao mesmo tempo, os homicídios caíram em todos os cinco lugares que registraram as maiores quedas da letalidade policial — Santa Cruz, Mesquita, Duque de Caxias, Magé e Leblon.

— Todas evidências mostram que não há relação entre aumento de autos de resistência e aqueda de homicídios— disse o sociólogo Ignacio Cano, professor da Uerj.

Os índices de violência do Rio em 2019, divulgados anteontem pelo Instituto de Segurança Pública (ISP), mostraram que o estado teve 3.995 homicídios dolosos no ano passado contra 4.950 em 2018 — uma redução de 19,3%. Por outro lado, foram 1.810 mortes em confronto com a polícia, em média, cinco por dia. É o maior número registrado desde 1998, início da série histórica.

Pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Alberto Liebling Kopittke observa que a violência policial, cada vez mais explícita, deve ser tratada como um dos grandes problemas do Rio e não como remédio:

—Possivelmente, parte da redução dos índices pode ser explicada porque o crime está dominando cada vez mais territórios, e não ficando mais fraco.

A antropóloga Jaqueline Muniz, professora de Segurança Pública da UFF, afirma que é preciso estudar a crescente influência da milícia para entender a nova dinâmica das quadrilhas do estado.

—O estado tem funcionado como agência reguladora do crime. É um processo de privatização dos recursos públicos da segurança, que implica no barateamento da vida do policial e das vidas de moradores da periferia —avalia.

Ex-chefe do Estado-Maior da PM, o antropólogo Robson Rodrigues também destaca que não há relação de causalidade entre os dois índices:

—Prova disso é que há áreas, por exemplo, em que os dois índices caem.

Ontem, o governador Wilson Witzel comemorou os resultados e criticou quem questiona o aumento da letalidade contra “vagabundos”.

— Alguém que pega um fuzil para atirar na polícia ou atirar na população só pode ser preso ou ser morto, porque ele está enfrentando a polícia com arma de guerra — afirmou Witzel, durante o lançamento do Programa Segurança Presente em Bonsucesso.