O Globo, n. 31529, 03/12/2019. País, p. 4

Nove mortes em baile funk: policiais afastados

Aline Ribeiro
Dimitrius Dantas
Guilherme Caetano
Suzana Correa


Um dia depois da tragédia na favela de Paraisópolis, onde nove pessoas que frequentavam um baile funk morreram pisoteadas após uma operação policial, o comando da Polícia Militar decidiu afastar das ruas seis dos 38 agentes envolvidos na ação. Não há prazo definido para a conclusão da investigação.

— Os seis policiais foram afastados pelo próprio comando da área deles, para preservá-los. A princípio, os outros não serão afastados. Tudo vai depender das apurações — disse o coronel Marcelino Fernandes, comandante da Corregedoria da PM.

O ouvidor das polícias, Benedito Mariano, pediu ao superintendente da polícia técnica e científica dois laudos: o balístico, para avaliar as armas recolhidas dos policiais que participaram da ação; e o exame de necropsia nas nove vítimas, para verificar a causa morte.

— A princípio, as vítimas foram mortas pisoteadas. Mas o laudo vai dizer. O órgão corregedor, que tem expertise de ser polícia judiciária militar, tem condições de investigar — disse.

Laudos apontam asfixia

Ontem, laudos do Instituto Médico Legal (IML) apontaram que ao menos duas vítimas morreram por “asfixia mecânica por sufocação indireta”, ou seja, acabaram sufocadas, mas ainda não se sabe em que circunstâncias. Vídeos que circulam nas redes sociais, supostamente gravados por testemunhas da ação na favela, indicam possíveis casos de abuso policial. Num deles, agentes espancam dois jovens numa viela. Em outra imagem, PMs cercam um grupo num beco. Assim teriam ocorrido as mortes por pisoteamento, dizem moradores e frequentadores do baile.

Famílias das vítimas reclamavam ainda ontem da atuação da polícia no caso. A tia de Marcos Paulo Oliveira dos Santos, de 16 anos, um dos mortos, afirmou que ele e um outro sobrinho estavam na festa quando houve a operação. Em meio ao tumulto, os dois primos teriam tentado se manter juntos, mas foram separados na correria da multidão. Um deles morreu, enquanto o outro, disse ela, sofreu agressões da polícia.

— Ele apanhou muito da polícia. Está todo cheio de hematomas. Disse que tropeçou, caiu e aí vieram vários policiais e bateram nele — afirmou ela, que pediu para não ser identificada.

O tumulto provocado pela ação da polícia, que lançou bombas de efeito moral e atirou balas de borracha, não foi surpresa para os familiares da única vítima do sexo feminino na tragédia, Luara Victória de Oliveira, de 18 anos.

Segundo eles, é comum a polícia atuar com truculência ao lidar com festas na periferia da cidade. Os parentes descobriram que Luara estava entre as vítimas no domingo à noite, quando a lista de nomes foi divulgada pelo “Fantástico”, da TV Globo.

A jovem morava com uma amiga após a morte do pai e da mãe e estava desempregada, segundo os parentes que atravessaram a madrugada cuidando dos trâmites para o velório e o enterro da jovem. Eles moram no bairro de Interlagos, na Zona Sul.

Assim como familiares de outras vítimas, os parentes de Luara deixaram o local com a informação de que as vítimas morreram por asfixia mecânica, conforme consta do laudo feito por peritos do IML e entregue ontem aos familiares.

Além dela, o documento que atesta a causa da morte de Dennys Guilherme dos Santos Franco, de 16 anos, também apontava asfixia mecânica. Familiares de Luara e Dennys deixaram o IML convictos de que os dois não apresentavam sinais de pisoteamento, mas hematomas provocados, segundo eles, por agressões.

— Ela está com o maxilar torto, muito machucada, com sinais de agressão. Ela está muito machucada para ter sido pisoteada — disse Leônidas Nascimento, tio de Luara.

Relatos divergentes

Segundo a PM, os seis policiais da Ronda Ostensiva com Apoio de Motocicletas (Rocam) participavam de uma operação de contenção nos arredores do baile funk, batizada de Pancadão, quando dois suspeitos passaram numa moto e foram abordados. Ainda de acordo com a corporação, os suspeitos não pararam, atiraram contra os policiais e fugiram em direção ao baile funk. A abordagem à moto ocorreu porque, segundo a polícia, o veículo era parecido com um que já havia atirado nos agentes.

Já testemunhas dizem que a polícia teria bloqueado os acessos às ruas do baile e encurralado os frequentadores, que ficaram sem saída. Ainda de acordo com a versão de quem estava no local, a polícia já chegou com uma abordagem violenta — e o público revidou — e bateu aleatoriamente nos jovens, o que gerou o tumulto.

O músico e ator Bruno Cesar da Silva, de 31 anos, morador da favela, disse que a polícia agiu com truculência desde o início da ação e que não teria sido possível ver nenhum tipo de perseguição contra suspeitos, conforme sustentam as autoridades.

— Não acredito que ninguém foi pisoteado. As pessoas que fugiam não eram da comunidade, não sabiam para onde ir. Eles (os policiais) se aproveitaram disso e encurralaram as pessoas na viela. Fecharam na pura maldade — afirmou.

A organização internacional de direitos humanos Human Rights Watch divulgou ontem uma declaração de luto sobre as nove mortes. No comunicado, a entidade cobrou uma investigação rápida, completa e independente do Ministério Público, “que tem a competência e a obrigação constitucional de exercer o controle externo sobre o trabalho da polícia”. Deputados de oposição se movimentam para criar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar as mortes.

Doria: ‘letalidade foi provocada por bandidos’

A Corregedoria da Polícia Militar de São Paulo, que assumiu a investigação do caso, afastou seis PMs que participaram da ação em baile funk na favela de Paraisópolis, na capital paulista, que resultou na morte de nove pessoas. A Ouvidoria da corporação requisitou laudo balístico e o exame de necrópsia para esclarecer se as vítimas de fato morreram pisoteadas e se houve abuso por parte dos policiais. Há relato de agressão a jovens. O governador João Doria defendeu a atuação dos PMs. Com medo de retaliação, testemunhas evitam falar.

O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), afirmou ontem que a atuação da Polícia Militar de São Paulo não sofrerá alterações após a tragédia em Paraisópolis e que as mortes não foram provocadas pelos policiais.

— A letalidade (nesse caso) foi provocada por bandidos e não pela polícia, tanto que o baile continuou. E ele nem deveria ter sido realizado —disse o governador, antes da conclusão das investigações, ascrescentando que as regras foram cumpridas.

— A PM segue rigorosamente todos os protocolos. Isso não significa que seja infalível. Determinei que a apuração seja rigorosa e plena. Mas a política de segurança pública não vai mudar. As ações em Paraisópolis, bem como outras comunidades do estado, sejam por obediência à lei do silêncio, busca e apreensão de drogas, ou roubo de bens, vão continuar. A existência de um fato não inibirá as ações de segurança no estado de São Paulo.

O governador definiu possíveis erros da Polícia Militar no evento, a serem investigados, como “excessos circunstancialmente cometidos ali”:

— Determinei apuração rigorosa dos fatos, sobretudo daqueles que entendemos que merecem ser investigados em profundidade.

No último dia 27 de setembro, Doria declarou que não era prioridade de sua gestão reduzir o índice de letalidade em ações da polícia.

Para o secretário de Segurança, general João Camilo Pires de Campos, o inquérito deve investigar quem eram os organizadores do evento e os motociclistas que, segundo a PM, iniciaram o tumulto ao atirar contra policiais que monitoravam os arredores do baile. Já o comandante de policiamento da capital, coronel Ramos, não descartou alterações nos procedimentos.

Ainda como candidato ao governo, Doria fez uma declaração polêmica sobre a forma como a polícia deveria atuar em sua eventual gestão:

— Se fizer o enfrentamento com a polícia e atirar, a polícia atira. E atira para matar — disse, em 2018.