O Globo, n. 31508, 12/11/2019. Sociedade, p. 35

Retrato de uma juventude desrespeitada
Daniel Biasetto


Redução histórica da mortalidade infantil, diminuição do analfabetismo e inclusão social de vulneráveis são conquistas do Brasil elencadas no relatório que o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) vai lançar hoje, em Brasília, para celebrar os 30 anos da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança.

Apesar dos avanços apresentados, o documento mostra que, dos cerca de 60 milhões de crianças e adolescentes do país, 26,5 milhões (44%) ainda sofrem privação de pelo menos um de seus direitos fundamentais —acesso à educação, informação, água, saneamento, moradia e proteção contra o trabalho infantil.

Quanto mais se aproximam da vida adulta, mais direitos as crianças vão perdendo: entre as que têm até 5 anos, 40% estão desassistidas em ao menos uma das garantias fundamentais; o percentual sobe para 45,5% no grupo entre 6 e 10 anos, para 58% na faixa de 11 a 13 anos e para 60% entre os adolescentes que têm de 14 a 17 anos.

Um total de 14 mil crianças e adolescentes não têm acesso a nenhum dos seis direitos analisados pelo estudo e são considerados completamente à margem de políticas públicas.

Os dados revelam que a exclusão escolar e a violência são as que mais preocupam: o Brasil tem 2 milhões de jovens fora das salas de aula e o número de homicídios na faixa etária de 10 a 19 anos mais do que dobrou entre 1990 e 2017.

O GLOBO apresenta, a partir de hoje, uma série de reportagens que analisa os dados do relatório do Unicef, começando pelo enfrentamento da exclusão escolar e as violências que afetam o direito de chegar e permanecer em sala de aula.

Melhora insuficiente

De acordo com o relatório do Unicef, o percentual de crianças e adolescentes fora da escola caiu de 19,6% para 4,7% ao longo das últimas três décadas. Também houve uma queda significativa na taxa média de analfabetismo entre 10 e 18 anos de idade: de 12,5%, em 1990, para 1,4%, em 2013, uma redução de 88,8%.

Ainda assim, o Brasil tem 2 milhões de jovens fora das salas de aula. Entre os alvos mais vulneráveis, aponta o documento, estão os mais pobres, negros, indígenas e quilombolas.

“Muitos deixam a escola para trabalhar e contribuir com a renda familiar; outros têm algum tipo de deficiência. Grande parte dos excluídos vive nas periferias dos grandes centros urbanos, no semiárido, na Amazônia e nas zonas rurais”, diz trecho do relatório.

O alto índice de reprovações é visto como um dos motivos que levam os alunos a abandonarem a escola. O Unicef usa os dados do Censo Escolar para mostrar que 2,6 milhões de estudantes brasileiros de escolas municipais e estaduais foram reprovados em 2018, ano em que mais de 912 mil abandonaram os bancos escolares.

Segundo os dados, 12,9% dos estudantes dos anos iniciais e 27,9% dos que estão nas séries finais do ensino fundamental têm dois ou mais anos de atraso escolar. No ensino médio, a taxa chega a 31,4%, ou seja, cerca de 6,5 milhões de meninas e meninos estão em risco de desistir da escola.

Problema multifacetado

O relatório aponta que são diversas as razões para o fracasso escolar, incluindo a falta de conexão entre o que é ensinado e a realidade dos estudantes, o que provoca um profundo desinteresse pela escola; a discriminação em relação a crianças e adolescentes pobres, LGBT, com deficiência, negros ou indígenas; a gravidez na adolescência; e a necessidade de trabalhar.

— Podemos citar como fatores que podem ser resolvidos no âmbito da educação a insuficiência de vagas, o transporte escolar mal prestado, a carência de professores, a violência nas relações escolares — afirma a promotora Débora Vicente, do Ministério Público do Rio. — Mas há fatores externos, que estão completamente fora da política educacional. Por exemplo, a pressão para que o adolescente trabalhe e tenha uma renda, a violência doméstica e no entorno das escolas.

Entre os que abandonaram a escola em 2018, 50% eram pretos ou pardos. Indígenas ficam com as maiores taxas de abandono e reprovação, enquanto os alunos com deficiência têm 59% mais probabilidade de reprovarem do que os estudantes sem deficiência.

Os que permanecem também enfrentam problemas como as condições precárias das instituições e a baixa qualidade do ensino ofertado. Para se ter uma ideia, aponta o relatório, menos da metade das escolas de ensino fundamental da rede pública possui biblioteca ou sala de leitura, e nem 10% delas têm laboratório de ciências.

“Não basta ofertar vagas. É necessário um esforço intersetorial — envolvendo saúde, educação, assistência social, entre outras áreas —para localizar cada um, entender as causas da exclusão escola retomar medidas necessárias para a matrícula e a permanência na escola”, aponta o estudo.

— O abandono e evasão escolar são fenômenos multifacetados que afetam, em geral, crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade.

Eles são os primeiros a sentir os impactos de crises econômicas e políticas severas — afirma Raquel Franzim, coordenadora da área de educação do Instituto Alana. — O impacto disso a médio e longo prazo é altíssimo com essa precariedade de garantias de direitos mínimos da criança e do adolescente.

(Colaborou Camila Zarur)