O Globo, n. 31537, 11/12/2019. Sociedade, p. 29

População miscigenada: genética médica

Rafael Garcia


Um projeto de universidades públicas em parceria com o setor privado vai sequenciar os genomas de 15 mil brasileiros e colocar os dados à disposição de cientistas que quiserem acessá los. Batizada de “DNA do Brasil”, a iniciativa é a maior do tipo já realizada na América Latina para sequenciar o DNA completo de indivíduos, e deve ajudar estudos de genética médica a se tornarem mais relevantes para populações miscigenadas, como a do Brasil.

A base de amostras será a de um acompanhamento clínico de grande escala que já funciona desde 2008, o Elsa (Estudo Longitudinal de Saúde do Adulto). O projeto, que envolve centros de pesquisa em seis estados brasileiros, registra o histórico médico de funcionários públicos que vivem em seis centros urbanos, mas inclui pessoas nascidas em todos os estados do Brasil.

Cenário mundial

Para viabilizar o estudo, a idealizadora do projeto, a geneticista Lygia da Veiga Pereira, da USP (Universidade de São Paulo), articulou parceria com a rede de laboratórios clínicos Dasa, que montou um laboratório de R$ 6 milhões para sequenciar as amostras de DNA dos participantes.

Os 3.000 primeiros genomas serão feitos pela empresa sem custo para o projeto, em troca de a empresa ser contratada para fazer os 12 mil restantes, a um custo de menos de US$ 650 (cerca de R$ 2,7 mil) por genoma.

A quantidade de dados que o projeto deve gerar está na casa dos 75 Terabytes (75 trilhões de bytes), levando em conta que o genoma de cada indivíduo sequenciado ocupa 5 Gigabytes (5 bilhões de bytes). Para guardar esses dados, a USP costurou um acordo com o Google, que vai alocar os primeiros genomas de graça na sua plataforma Google Cloud, para armazenar e processar dados.

Segundo Veiga Pereira, o “DNA do Brasil” tem a pretensão de colocar o país numa situação relevante no cenário mundial de pesquisa genômica.

— O Brasil era um buraco no mapa — afirma.

— E a gente quer colocar o Brasil no mapa dos genomas, sequenciando esses 15 mil brasileiros bem caracterizados pelo Elsa.

A vantagem de acoplar o estudo genômico a outro de acompanhamento médico clínico é que, de cara, já serão gerados dados que permitam fazer estudos de associação entre DNA e doenças complexas, multifatoriais, como diabetes e mal de Alzheimer.

48 pessoas em 36 horas

Por estar concentrado em apenas seis centros urbanos, o Elsa não possui uma amostragem perfeita da população brasileira, mas é uma opção melhor que a dos estudos de associação genômica publicados hoje, com amostragem estrangeira.

— O Elsa tem a melhor amostragem possível — defende Paulo Lotufo, da USP, um dos coordenadores do projeto.

— A razão de restringir o estudo a funcionários públicos e a seis centros urbanos é que as instituições de pesquisa que fazem o acompanhamento têm infraestrutura para tal, e essas pessoas não costumam mudar de emprego nem de cidade, e podem ser acompanhadas idealmente pela vida toda.

— A gente vai poder então viabilizar o desenvolvimento desses testes preditivos baseados na nossa genética, e não em testes preditivos baseados na genética dos finlandeses — diz Veiga Pereira.

O Dasa, que vai entrar com infraestrutura de sequenciamento, conseguiu um preço competitivo ao negociar um acordo com a Illumina, empresa americana que fabrica hoje os melhores equipamentos do setor. Uma máquina que o laboratório brasileiro adquiriu para o projeto é capaz de sequenciar uma bandeja com amostras de genomas de 48 pessoas em 36 horas.

— Devemos conseguir sequenciar os primeiros 3.000 genomas até o inicio do segundo trimestre do ano que vem — afirma Gustavo Campana, diretor médico da Dasa.

— A gente acredita que em 12 a 18 meses consiga fazer os 15 mil.

Um detalhe importante precisa ser articulado pelo projeto: não existe ainda verba para fazer os 12 mil genomas restantes.

— Quando fui ao Ministério da Ciência no meio do ano, eles acharam o projeto fantástico, mas disseram: não temos — conta Veiga Pereira.

— Estou conversando com a Fapesp e outros. Com essa visibilidade, e mostrando a importância disso, a gente espera conseguir o apoio suficiente para chegar nos 15 mil genomas.

Miscigenação do país impõe desafio no estudo de doenças complexas

A principal razão pela qual o Brasil precisa mapear o DNA de sua população é aquilo a que médicos se referem como “medicina personalizada”. E isso requer o sequenciamento de genomas inteiros, e não apenas de trechos isolados de DNA. Um único gene defeituoso pode explicar doenças estritamente genéticas, raras, como anemia falciforme.

Mas é um desafio muito maior compreender o fundo genético de males mais comuns, como diabetes, hipertensão e câncer. No caso dessas doenças mais frequentes, que dependem também do estilo de vida do paciente, a propensão inata é considerada “poligênica”, ou seja, depende de muitos genes.

A maneira como a pesquisa médica moderna conseguiu identificar quais genes são relevantes na emergência dessas doenças complexas é sequenciar genomas inteiros de pacientes e compará-los com os de outras pessoas.

Para essa estratégia dar certo, porém, é preciso que esses genomas que são base de comparação tenham um grau de similaridade razoável com o da paciente em questão. Como descobrir variantes capazes de afetar um brasileiro com ancestralidade negra ou indígena se quase 80% das populações avaliadas em estudos de associação genômica são de origem europeia?

— Existe uma questão ética de falta de representatividade da população mundial — diz a geneticista Lygia da Veiga Pereira. — Para quem a gente está desenvolvendo essa medicina genômica de precisão? Todos esses novos testes de predição de doenças estão sendo feitos baseados na genética europeia.

A população brasileira, além disso, apresenta outro desafio de pesquisa. Ela é mais miscigenada e possui um componente residual indígena de DNA maior do que o da população dos EUA, que já está bem amostrada em estudos.