Correio Braziliense, n. 20652, 08/12/2019. Política, p. 5

Novo embate com a cultura
Augusto Fernandes


Após forte reação de políticos e da classe artística, o presidente Jair Bolsonaro anunciou, no fim da tarde de ontem, a decisão de revogar resolução que exclui da categoria de microempreendedor individual (MEI) 14 ocupações ligadas à arte e ao ensino. A medida, assinada pelo presidente do Comitê Gestor do Simples Nacional, José Barroso Tostes Neto, foi publicada no Diário Oficial da União de sexta-feira, levou o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), a afirmar que, caso o governo não voltasse atrás, a decisão seria revogada por meio de um decreto legislativo. “Se a medida não for revogada até terça-feira, tomaremos essa providência”, disse. “A cultura — e todos que trabalham com ela — é um patrimônio do país. Essa é uma decisão que não faz sentido. A cultura é a alma da nossa democracia”, afirmou o deputado. Segundo Maia, a posição foi tomada em comum acordo com o Presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP).

O episódio marcou mais um dos frequentes embates do governo Bolsonaro com a classe artística. Desde o início do mandato, o presidente ameaçou extinguir a agência reguladora responsável por fomentar e fiscalizar a indústria cinematográfica nacional e nomeou, para órgãos oficiais ligados à cultura, pessoas que condenam algumas das produções do país.

A resolução do presidente do Comitê Gestor do Simples exclui 14 profissões e três subclasses do programa — que é a única fonte de renda de 1,7 milhão de famílias no Brasil e que tirou mais de 2 milhões de empreendedores da informalidade desde 2009, segundo o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae). De acordo com a medida, trabalhadores independentes como cantores, músicos, DJs, humoristas, contadores de histórias e instrutores de arte, de cultura, de artes cênicas e de música não poderiam se tornar MEI a partir de 1º de janeiro de 2020. Cadastrados no MEI gozam de redução de impostos federais e da contribuição previdenciária.

Apesar de Bolsonaro ter confirmado que a resolução seria revogada, a Receita Federal informou que o Comitê Gestor do Simples Nacional vai analisar uma “proposta de ampla revisão da lista das cerca de 500 atividades que podem atuar como MEI, considerando dinamismo econômico que resulta no constante surgimento e transformação de novas ocupações”.

O anúncio da exclusão repercutiu de forma negativa no meio artístico. Para o rapper Emicida, “é criminoso excluir atividades artísticas e culturais do MEI”. “Empurra mais gente ainda para um lugar obscuro, sem chance de emancipação econômica baseada em seus maiores talentos”, alertou o músico, pelas redes sociais. Já o cantor Frejat classificou a resolução como uma “sabotagem vil, que faz mal ao Brasil e aos brasileiros só para vencer uma pendenga pessoal”.

Guerra aberta

Segundo especialistas, a revogação não contorna o mal-estar da já desgastada relação entre a classe cultural e o governo federal. “Essas iniciativas visam claramente criar dificuldades para a produção cultural no país. Não me parece que esteja havendo alguma tentativa de diálogo. É nítida a má vontade do governo com a classe artística, que, majoritariamente, apoiou outros partidos no processo eleitoral de 2018”, alertou o cientista político Geraldo Tadeu, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Ele citou as nomeações do dramaturgo Roberto Alvim para a Secretaria Especial de Cultura e a de Dante Mantovani para a presidência da Fundação Nacional de Artes (Funarte) como atitudes equivocadas — enquanto o primeiro chamou a atriz Fernanda Montenegro de “sórdida”, o segundo disse que “o rock ativa o satanismo”. “Há uma política deliberada do governo federal de destruir as bases da produção artística e cultural brasileira. É um processo de revanchismo”, comentou Tadeu.

O problema, lembra a doutora em cultura brasileira Tânia Montoro, da Universidade de Brasília (UnB), é reforçado quando porta-vozes do presidente fora do Palácio do Planalto sustentam o seu discurso. A deputada Bia Kicis (PSL-DF), por exemplo, disse ao Correio, na última quinta-feira, que “a cultura brasileira virou lixo”. “Liberdade de expressão todos têm, mas declarações como essas nos empobrecem muito. Lamento pelo que estamos passando, pois a ignorância dos nossos dirigentes não condiz com a malha de intelectualidade artística que o Brasil ainda possui”, analisou a professora.

Para ela, as decisões do governo federal que refletem no ambiente artístico deixam o futuro dos profissionais em xeque. “Geram não só apreensão e medo, como é um desmonte de tudo o que foi construído ao longo dos anos. Nós temos que preservar a nossa identidade cultural. Nas últimas duas décadas, ganhamos prêmios internacionais de cinema muito importantes, mesmo com um investimento muito ruim. Portanto, isso tem de ser melhorado, para não ficarmos reféns da hegemonia televisiva ou da grande mídia”, afirmou Tânia Montoro.

Conflito constante

Bolsonaro e a cultura

 Lei  Rouanet

» Em abril, o governo federal promoveu mudanças na Lei Rouanet — forma de recolher fundos para ampliar os investimentos na área cultural do país por meio do incentivo fiscal —, a começar pelo nome, que passou a ser Lei de Incentivo à Cultura. A principal alteração foi um corte no teto do valor que pode ser captado por projeto: de R$ 60 milhões, o limite caiu para R$ 1 milhão. Para as empresas que apresentarem vários projetos, a soma deles não pode superar R$ 10 milhões. Anteriormente, era possível chegar aos R$ 60 milhões.

Ancine

» Em julho, Bolsonaro afirmou que iria “buscar a extinção da Ancine (Agência Nacional do Cinema)”. De acordo com ele, dinheiro público não deve ser usado para fazer obras audiovisuais pornográficas e o governo faria um filtro sobre as produções audiovisuais. “Vai ter um filtro, sim, já que é um órgão federal. Se não puder ter filtro, nós extinguiremos a Ancine, privatizaremos ou extinguiremos”, afirmou, à época.

Conselho Superior do Cinema

» Usando um discurso parecido, o presidente decidiu, no mesmo mês, transferir o Conselho Superior do Cinema do Ministério da Cidadania para a Casa Civil. “Eu não posso admitir que com o dinheiro público se faça filmes como da Bruna Surfistinha. Não dá. Não somos contra quem tem essa ou aquela opção. Mas o ativismo que não podemos permitir, em respeito com as famílias”, comentou Bolsonaro.

Profissões

» Em novembro, o governo federal lançou o Programa Verde e Amarelo, com o intuito de incentivar a criação de empregos com carteira assinada. Contudo, o projeto também muda diversas regras da atual legislação trabalhista e determina que algumas carreiras não precisarão mais de registro profissional nas Delegacias do Trabalho. Dentre as ocupações, estão as de músico e artista.

Funarte

» Na semana passada, o Poder Executivo nomeou Dante Mantovani como novo presidente da Funarte. Segundo ele, “o rock ativa as drogas, que ativam o sexo livre, que ativa a indústria do aborto, que ativa o satanismo. O próprio John Lennon disse que fez um pacto com o diabo”.