Título: Além do Fato: A privatização que quebrou a Vasp
Autor: Cláudio Magnavita
Fonte: Jornal do Brasil, 07/04/2005, Economia, p. A18

A decisão do governo federal de confiscar os recursos do governo do Estado de São Paulo para responder pelas dívidas da Vasp com a União colocou luz num ponto que vinha sendo omitido na mídia. O governo paulista ainda é o avalista de boa parte da dívida da companhia aérea com a União, envolvimento que foi fundamental no processo de privatização realizado no governo de Orestes Quércia. Na época, os avais chegaram a um montante superior a US$ 250 milhões. A participação do Estado minguou de 44% para míseros 4% no capital da companhia, o mesmo não ocorrendo com as suas contrapartidas em avais assumidos. Mais qual foi o papel do Estado de São Paulo em toda esta história? Como empresa estatal, a Vasp chegou a ser a segunda companhia aérea do país. Foi pioneira na padronização de sua frota a jato, recebeu prêmios de excelência para sua manutenção e trouxe o primeiro simulador da aeronave 737 ao Brasil. A companhia introduziu em todo o país a primeira rede de reservas eletrônicas, com seus próprios terminais, e foi a primeira a adotar o ticket-print, o mesmo sistema que foi utilizado até a sua paralisação. Uma bandeira que dava orgulho aos paulistas e a todos os brasileiros.

A excelência técnica da Vasp foi ¿ até a sua privatização ¿ um modelo de operação e eficiência, resistindo às alternâncias de diretoria, que mudavam de acordo com os novos governos estaduais. Mudavam-se os integrantes do quarto andar da sede em Congonhas, mas a estrutura técnica e das bases era respeitada. A interferência política tinha limites sagrados, que era seguida religiosamente durante décadas.

O primeiro colapso veio com a chegada da esquerda ao poder. Quando o MDB, então reduto único da oposição, assumiu o governo de São Paulo, com a eleição de André Franco Montoro, que sucedeu Paulo Maluf, a Vasp foi loteada politicamente em diferentes níveis. Para algumas bases foram nomeados gerentes gerais oriundos dos quadros partidários. Uma leva de ex-deputados e membros do partido virou gerente regional sem o menor conhecimento do cargo. Contrariando uma posição mercadológica (a companhia era uma empresa comercial), a Vasp se transformou em um braço da oposição no apagar das luzes dos governos militares.

O secretário de Transportes, Mário Covas, e o presidente da companhia, Antonio Angarita, patrocinaram um loteamento memorável de funções gerenciais. A Vasp foi politizada nos mais diferentes níveis. Com a chegada de Quércia ao governo, o Estado de São Paulo se transformou num grande balcão de negócios. A privatização da Vasp fez parte deste cenário mercantilista que faliu São Paulo, estabelecendo-se, no início dos anos 90, uma conexão que reuniu numa mesma equação: um governador com muito apetite, PC Farias e um empresário que fez fortuna em torno dos negócios envolvendo concessões públicas na área de transporte.

Privatizada, a segunda maior empresa do setor estava livre para voar, agora patrocinada pelo governo Collor. As autoridades aeronáuticas tiveram de ceder a determinações presidenciais, dando início a uma concorrência predatória nas rotas internacionais e no mercado doméstico. Foi um cenário de crescimento desordenado, sem base, que resultou em colapso e prejudicou mortalmente o mercado. Não apenas a Varig e a Transbrasil foram vítimas, mas a própria Vasp sucumbiu a uma ousadia político-empresarial do grupo Canhedo, criando seqüelas que até hoje não cicatrizaram.

O mais grave deste quadro é a situação do corpo técnico e funcional da Vasp. São milhares de famílias submetidas a um festival de humilhações e omissões por parte do poder concedente (o serviço aéreo é uma concessão federal!) sem que haja uma única voz capaz de defendê-los e clamar por justiça. Em todos os aeroportos do Brasil, em todas as grandes cidades, existe uma legião de funcionários que estão sem receber há vários meses e que estão literalmente no limbo. Não foram demitidos e não trabalham porque a companhia parou. Nos aeroportos, as três dezenas de aeronaves paralisadas já começam a ser sucateadas pelo tempo e formam um monumento aeronáutico a uma passividade quase criminosa das nossas autoridades federais. Nada fazem, nada pedem e nada enxergam. É como se a semente das negociatas que promoveram a privatização da Vasp ainda estivessem vivas e a serviço de um novo jogo de interesses. Mudando-se apenas os valores, os personagens e o cenário.

A decisão do governo federal em executar o governo de São Paulo como avalista da Vasp é o único fato novo deste cenário. Um fato capaz de reavivar a memória e cobrar promissórias que foram emitidas em pleno processo de redemocratização do país, quando a esquerda chegou ao poder pela primeira vez, mostrando que negociatas não eram exclusividade de um único grupo político e que por quarenta tostões seria possível fragilizar mortalmente uma atividade que é vital para um país de dimensões continentais como o Brasil.

*Presidente Nacional da Associação Brasileira de Jornalistas de Turismo e membro do Conselho Nacional de Turismo