Valor econômico, v. 21, n. 5117, 29/10/2020. Brasil, p. A2

 

Bolsonaro revoga decreto que incluía UBS no Programa de Parceria de Investimentos

Matheus Schuch

Isadora Peron

Edna Simão

29/10/2020

 

 

A decisão se deu depois de um dia inteiro de crise, por causa da suspeita de que o decreto abriria caminho para a privatização do SUS

Após repercussão negativa, o presidente Jair Bolsonaro decidiu revogar o Decreto 10.530, publicado ontem e que incluía Unidades Básicas de Saúde (UBS) no Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) para a realização de estudos. O novo ato foi publicado na noite passada, em edição extraordinária do “Diário Oficial da União”. A decisão se deu depois de um dia inteiro de crise, por causa da suspeita de que o decreto abriria caminho para a privatização do Sistema Único de Saúde (SUS).

Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) avaliaram que o tema chegaria à corte. No Congresso, parlamentares da bancada de saúde propuseram decretos legislativos para anular a autorização do governo e analisavam medidas judiciais caso o decreto fosse mantido.

Apesar da polêmica, parcerias entre o governo e a iniciativa privada para construir e operar unidades de saúde não são novidade no país. De acordo com a consultoria Radar PPP, já estão em operação hoje 11 Parcerias Público-Privadas (PPPs) em hospitais e UBSs. No Reino Unido, referência em serviço público de saúde, são 127 unidades. Desde o governo de Michel Temer está em discussão, no âmbito do PPI, a realização de estudos para modelar formas de concluir essas UBS inacabadas com a ajuda do setor privado. “Tem que aguardar um pouco mais, porque o tema deve bater no Supremo”, reagiu o ministro Marco Aurélio Mello, ao ser questionado sobre o risco de privatização do SUS. “A saúde é dever do Estado também. É um dever de todos. Mas eu costumo dizer que atividade essencial tem que ser o Estado.”

Outro ministro, que pediu reserva, apontou que era preciso aguardar para saber qual modelo seria proposto. Ele lembrou que hoje já há atuações com do Estado com a iniciativa privada em hospitais, como as Santas Casas.

Antes de Bolsonaro revogar o ato, a deputada Jandira Feghalli (PC do B - RJ) protocolou um projeto de decreto legislativo para sustar a medida do governo. “O SUS é uma estrutura pública universal e dever do Estado”, afirmou. “O decreto aponta claramente para a privatização.” Ela lembrou que as UBS são a porta de entrada para o sistema público de saúde e também onde se faz a vacinação, inclusive contra a covid-19, quando for possível.

Sob pressão, a Secretaria Geral da Presidência e o Ministério da Economia emitiram notas para tentar esclarecer a iniciativa. A primeira disse que “o objetivo primordial do decreto é tão somente permitir que sejam realizados ou contratados estudos multidisciplinares (econômico-financeiros, gerenciais, políticos, jurídicos e sociais) para alimentar o governo de dados e informações sobre a atual situação das UBS, eventuais opções existentes para a melhoria das UBS, possibilidade de parcerias com a iniciativa privada e, por fim, a viabilidade (ou inviabilidade) de aplicação concreta daquelas alternativas”.

Já o Ministério da Economia informou que a decisão de qualificar as UBS no Programa de Parcerias de Investimento (PPI) para a realização de estudos foi tomada em conjunto com o Ministério da Saúde. Chamou a atenção dos críticos à medida o fato de o decreto não ter sido assinado pelo ministro Eduardo Pazuello. O ministério acrescentou que, atualmente, há mais de 4 mil UBS com obras inacabadas que, de acordo com a pasta da Saúde, já consumiram R$ 1,7 bilhão de recursos do SUS. “Se tem uma coisa que esse decreto não fazia era inaugurar o debate sobre PPPs na área de saúde”, comentou o sócio da Radar PPP Guilherme Naves. Ele mora em Belo Horizonte, onde há uma UBS gerida por uma PPP. A população a avalia positivamente, principalmente pela qualidade do serviço, afirmou. Nessa unidade da capital mineira, o sócio privado construiu a UBS e, durante 20 anos, fornecerá serviços como manutenção, segurança, hotelaria. “É tudo, menos o que é do SUS”, explicou Naves. Os profissionais de saúde que atuam nessa UBS são do SUS. A PPP fornece apenas a infraestrutura. O sócio privado é pago se cumprir metas de qualidade. “Não é privatização”, disse ele. “As pessoas não pagam nada por isso e continuam sendo atendidas pelo SUS.” Ele lamentou a forma como o governo lançou a ideia de fazer PPPs para as UBS, sem maiores esclarecimentos, o que levou a interpretações equivocadas, a seu ver. Com isso, perdeu-se uma grande oportunidade de destravar as obras.

A medida foi avaliada como “natimorta” pela procuradora de Contas do Estado de São Paulo Élida Graziane antes mesmo do anúncio da revogação. Ela via um contexto político desfavorável ao debate, assim como a forma como a iniciativa foi lançada: um decreto presidencial, sem diálogo prévio com Estados e municípios. A procuradora aponta para problemas nas PPPs. Um deles é o custo elevado. Na construção e administração de presídios, esse instrumento traz custos três vezes maiores do que se o trabalho fosse feito pelo governo. No entanto, disse, pode ser uma alternativa diante da impossibilidade de o Estado investir na velocidade necessária.

Outro problema apontado pela procuradora é o risco de as PPPs servirem para Estados e prefeituras burlarem limites de gasto com pessoal. Podem também driblar limites para endividamento, uma vez que o investimento para a construção da infraestrutura envolve uma operação de crédito. Tal como nas unidades administradas por organizações sociais, as PPPs podem trazer menos transparência, por exemplo, quanto ao nepotismo. O argumento principal do governo federal, a necessidade de concluir obras paradas, não se sustenta, avalia a procuradora. Isso porque os recursos de emendas parlamentares ao Orçamento são majoritariamente direcionados a essas obras.