O globo, n.31712, 03/06/2020. País, p. 4

 

142, o artigo da vez

Carolina Brígido 

Victor Farias

03/06/2020

 

 

Após mais um fim de semana de manifestações contra a democracia, com novos ataques ao Supremo Tribunal Federal (STF) e sobrevoo de helicóptero do presidente Jair Bolsonaro ao lado do ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, uma interpretação particular do artigo 142 da Constituição Federal ganhou respostas institucionais. O artigo afirma que, para garantir a lei e a ordem, as Forças Armadas podem ser empregadas por iniciativa de qualquer um dos Poderes e que o presidente da República tem autoridade sobre Exército, Marinha e Aeronáutica. Em manifestações, grupos pró-Bolsonaro usam esse artigo para defender uma intervenção militar no país, o que afronta o texto constitucional.

Ministros do STF, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o procurador-geral da República manifestaram se publicamente nos últimos dois dias afirmando que a Constituição é clara ao dispor que as Forças Armadas não têm papel moderador entre Poderes e não podem ser usadas para intervenção sobre Executivo, Legislativo ou Judiciário. Apesar de seus apoiadores, o próprio Bolsonaro disse, na reunião ministerial do dia 22 de abril, que a interpretação do artigo é equivocada.

O clima de tensão em torno desse artigo ficou mais evidente quando o procurador geral da República, Augusto Aras, afirmou que as Forças Armadas poderiam agir se um poder “invadir a competência do outro”. A frase foi dita em entrevista ao programa “Conversa com o Bial”, da TV Globo. Alvo de críticas que o acusam de proteger o presidente Bolsonaro, Aras emitiu uma nota para desfazer a má impressão que causou sua declaração, inclusive entre ministros do STF, e se reposicionou de forma enfática: não existe previsão constitucional para intervenção das Forças Armadas. “A Constituição não admite intervenção militar. Ademais, as instituições funcionam normalmente. Os Poderes são harmônicos e independentes entre si. Cada um deles há de praticar a autocontenção para que não se venha a contribuir para uma crise institucional”, escreveu Aras na nota.

SEM CELULAR

A OAB divulgou ontem parecer contrário à interpretação feita por apoiadores do presidente do artigo 142. Na reunião ministerial de 22 de abril, o próprio Bolsonaro mencionou o artigo ao se defender de críticas à sua participação em ato em frente ao QG do Exército. Bolsonaro disse que “não existe AI-5”, “uma besteira”, e fez referência a quem defende a intervenção militar: “Artigo 142... é um pessoal que não sabe interpretar a Constituição”.

No parecer, a OAB afirma que as Forças Armadas não têm a função de Poder Moderador. A entidade lembrou que o termo foi abolido no Brasil desde a proclamação da República, em 1889. Segundo o texto, as Forças Armadas estão inseridas na estrutura do Poder Executivo, o comando do presidente da República. Portanto, se houvesse intervenção no Legislativo e no Judiciário, seria desrespeitado o princípio constitucional da separação dos Poderes. “Afinal, com isso, estabelecer-se-ia uma hierarquia implícita entre o Poder Executivo e os demais Poderes”, diz o documento.

“Há temas que a OAB possui obrigação legal e histórica de defender, como os direitos humanos, a democracia e as prerrogativas da advocacia. Em diversos momentos da história do Brasil, a OAB se manteve contrária à instituição do poder militar, afastando a soberania popular expressada no poder civil. Ao editar o presente parecer, a OAB mantém a sua tradicional linha histórica”, diz o texto, que tem a assinatura do presidente da entidade, Felipe Santa Cruz; do presidente da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais, Marcus Vinicius Furtado Coelho; e do advogado Gustavo Binenbojm, integrante da mesma comissão.

Decano do STF, o ministro Celso de Mello, que também tem reagido a ataques ao Supremo, arquivou o pedido de apreensão dos celulares de Jair Bolsonaro e seu filho Carlos Bolsonaro feito por partidos políticos e parlamentares para a investigação sobre a suposta interferência política do presidente na Polícia Federal. Na mesma decisão, em mais um alerta sobre a separação dos Poderes, o ministro enviou um recado direto ao presidente, dizendo que não se pode falar em descumprimento de ordem judicial. Bolsonaro já havia declarado que se o STF determinasse a apreensão de seu celular não entregaria.

“Tal insólita ameaça de desrespeito a eventual ordem judicial emanada de autoridade judiciária competente, de todo inadmissível na perspectiva do princípio constitucional da separação de poderes, se efetivamente cumprida, configuraria gravíssimo comportamento transgressor, por parte do Presidente da Resob pública, da autoridade e da supremacia da Constituição Federal”, escreveu.

Ao comentar a polêmica sobre o artigo 142, outro ministro do STF criticou a interpretação. Para Gilmar Mendes, estão lendo “jabuticabas” no texto e o episódio “parece uma viagem de lunáticos”.

MORAES NO TSE

O ministro do STF Alexandre de Moraes tomou posse ontem como integrante do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em solenidade virtual, transmitida pela internet. Estavam presentes, à distância, Bolsonaro; os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), ministros de governo, integrantes do TSE e Aras. O presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, comemorou:

—Esta mesa é prova viva da independência e harmonia entre os Poderes, todos aqui reunidos fraternalmente, o amor ao Brasil, o amor à democracia e o amor à Justiça nos une a todos, acima de qualquer divergência.