O Estado de São Paulo, n. 45945, 03/08/2019. Internacional, p. A12

 

CPI no Paraguai investigará acordo sobre Itaipu que beneficiaria o Brasil

Carla Bridi

Fabio Leite

Luiz Raatz

03/08/2019

 

 

Auditoria. Parlamento vai apurar atuação do presidente Abdo Benítez e do vice Velázquez, ainda ameaçados de impeachment, em razão de pacto assinado em maio com o governo brasileiro para a renegociação da venda de energia; oposição vê ‘traição à pátria’

O Paraguai anunciou ontem a abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar a atuação do presidente Mario Abdo Benítez e do vice-presidente Hugo Velázquez no acordo assinado em maio com o governo brasileiro para a renegociação da venda de energia paraguaia vinda de Itaipu, anulado na quinta-feira.

O pacto previa um aumento gradual do valor pago pelos paraguaios. A CPI investigará se houve de fato traição à pátria e afronta à soberania paraguaia, acusações feitas pela oposição.

Dos cinco senadores escolhidos, dois são integrantes do Partido Colorado (ANR), governista, enquanto outros dois fazem parte do Partido Liberal Radical Autêntico (PLRA), principal opositor de Abdo Benítez. A composição do restante do grupo, de cinco deputados, deve ser anunciada na segunda-feira.

“Haverá uma disputa política muito forte, porque estão representados todos os setores, incluindo aqueles que sustentam de maneira clara que existem elementos para abrir um processo político”, disse ao Estado o sociólogo e analista político paraguaio Camilo Soares. Embora a função da comissão não seja encaminhar um processo de impeachment, ela poderia encontrar informações relevantes que mostrem que houve um ato de corrupção. “Se isso acontecer, o pedido de impeachment dos deputados certamente ganhará força”, avalia Soares.

Apesar de o cancelamento do acordo com o Brasil ter sido visto como uma medida para manter Benítez no poder, o PLRA deve apresentar na Câmara um pedido de julgamento político contra o presidente e seu vice. Os 30 deputados do partido ainda precisam de mais apoio para compor os 53 votos necessários para a aprovação do pedido em plenário. Embora inicialmente o Partido Colorado tenha se manifestado a favor do impeachment, a vertente ligada ao expresidente do Paraguai Horacio Cartes (2013-2018) decidiu apoiar o presidente. Escândalo. A imprensa do Paraguai divulgou ontem novas mensagens de celular atribuídas a Pedro Ferreira, ex-presidente da estatal elétrica paraguaia Ande, e ao advogado José Rodríguez González, assessor jurídico da vice-presidência do Paraguai.

Elas indicam o envio de uma carta de intenções ao empresário Alexandre Giordano, suplente do senador Major Olímpio (PSL-SP), mencionando a possibilidade de compra de energia da Ande. Ao Estado, Giordano disse que não se recorda da carta e voltou a negar qualquer relação da sua ida ao Paraguai com a retirada de uma cláusula do acordo bilateral que permitiria a venda de energia a pessoas jurídicas sem autorização da Eletrobrás. “Isso deve ser uma briga política deles. Não tenho nenhuma relação com esse acordo. A Léros me chamou e eu fui lá escutar a proposta da Ande sobre venda de energia. Existe uma licitação aberta, que é pública. Eu não comprei nada. A própria Léros não assinou nada”, afirmou.

Giordano também negou ter se apresentado como senador e usado o nome do presidente Jair Bolsonaro na reunião com diretores da Ande. Filiado ao PSL, ele é dono de empresas de mineração, terraplenagem e instalação de materiais metálicos usados em torres de energia e se diz fornecedor da Léros, que é geradora e comercializadora de energia no Brasil. A reportagem tentou contato com Kléber Ferreira, sócio da Léros, mas ele não atendeu as ligações.

De acordo com o canal de TV paraguaio NPY, no começo de maio, González abordou Ferreira usando o nome do vice-presidente Hugo Velázquez e da família de Bolsonaro para conseguir uma reunião entre a Ande e um enviado da Léros.

Em 17 de maio, uma semana antes da assinatura da ata sobre Itaipu, González revelou ao presidente da Ande o interesse da Léros em contratar energia paraguaia.

O Tratado de Itaipu impede a venda de energia da usina para comercializadoras – a Eletrobras e a Ande são os únicos agentes autorizados a receber a energia da usina. O documento também estabelece que a prestação de serviços da usina deve ser igual ao custo do serviço – ou seja, é proibido vender a energia a preços de mercado ou com margem de lucro.

Segundo González, a flexibilização desta proibição chegou a ser discutida, mas não avançou a pedido de Velázquez, o vicepresidente paraguaio. Outro pilar do tratado é a garantia de que apenas os dois países podem usufruir da energia – pelo menos até 2023. Por isso, a ata anulada unilateralmente pelo Paraguai não fazia menção à possibilidade de venda de excedentes a comercializadoras, segundo fontes consultadas pela reportagem. De olho no potencial da renegociação dos termos financeiros do tratado, o Paraguai já iniciou estudos para apresentá-los ao Brasil. 

- DEMISSÕES

A administração paraguaia de Itaipu teve outra baixa ontem, com a saída do diretor técnico José María Sánchez Tillería. O chanceler paraguaio e o embaixador no Brasil já perderam os postos.

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Mesmo com acordo, subsídeo sera de US$ 40 mi até 2022

Anne Warth

03/08/2019

 

 

Paraguai aumentaria a compra de energia mais cara, mas Brasil o subsidiaria no período de quatro anos

Anulado após desestabilizar o governo do presidente Mario Abdo Benítez, o acordo para reequilibrar a contratação da potência da usina de Itaipu manteria um subsídio pago pelo Brasil ao Paraguai. Segundo apurou o Broadcast, pela ata assinada em 24 de maio, mesmo aumentando a conta paraguaia, os consumidores brasileiros teriam de arcar com US$ 400 milhões para manter as tarifas do país vizinho mais baixas até o fim de 2022.

Hoje, o consumidor brasileiro paga, em média, US$ 41 por megawatt/hora (MWh) pela energia de Itaipu, enquanto o paraguaio despende US$ 26 por MWh. Essa diferença ocorre porque o Brasil contrata a maior parte da energia mais cara da usina – chamada garantida, que custa US$ 43,80 por MWh –, enquanto o Paraguai se aproveita de praticamente toda a energia mais barata – conhecida como excedente, que custa US$ 6 por MWh.

O acordo anulado na quintafeira previa que o Paraguai aumentasse, progressivamente, a contratação da energia garantida da usina, de forma a reequilibrar a relação com o Brasil. Mas o acordo mantinha uma vantagem embutida para os paraguaios.

Pela ata, neste ano, o Paraguai aumentaria a compra da energia mais cara em 9,6%. Para 2020, 2021 e 2022, a contratação deveria ser elevada em 12% a cada ano. Com esta proposta, o Brasil ainda subsidiaria o Paraguai em US$ 190 milhões em 2019, US$ 120 milhões em 2020, US$ 82 milhões em 2021 e US$ 28 milhões em 2022. No período de quatro anos, o subsídio atingiria US$ 400 milhões.

Os termos do acordo vieram a público na semana passada, após Pedro Ferreira, ex-presidente da estatal paraguaia de energia Ande, ter rejeitado assinar a ata, que ele classificou como “entreguista”. O documento foi referendado, em 24 de maio, por representantes dos ministérios de Relações Exteriores do Brasil e do Paraguai.

Ontem, o diretor técnico de Itaipu no Paraguai, José María Sánchez Tillería, renunciou ao cargo. Foi a sexta autoridade paraguaia a cair desde a crise, que já derrubou Pedro Ferreira e seu substituto, Alcides Jiménez, o chanceler Luiz Castiglioni, o embaixador Hugo Saguier e o ex-diretor José Alderete. Notícias na imprensa paraguaia dão conta de que os conselheiros paraguaios também devem ser substituídos.

O lado brasileiro aguarda, agora, a definição dos novos escolhidos para negociar a contratação da potência de Itaipu. Não há perspectiva sobre quando o problema será resolvido. Enquanto um novo acordo não sai, Itaipu deixa de faturar, em média, US$ 22 milhões por mês – nem Brasil, nem Paraguai aceitam arcar com esse custo. Até o momento, a usina tem mantido seus pagamentos em dia.

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6 perguntas para...

Rodrigo Turrer

03/08/2019

 

 

Miguel Carter, cientista político mexicano, radicado no Paraguai

1. Quais eram os problemas do acordo cancelado?

Itaipu é uma questão extremamente sensível para o Paraguai, já que fornece 90% da energia elétrica consumida pelo país. Esse acordo com o Brasil foi tratado com muito sigilo pelo governo. Há um consenso no país de que o tratado e esta última negociação foram amplamente desfavoráveis aos paraguaios.

2. O sr. crê que o Tratado de Itaipu é lesivo ao Paraguai?

Estudos mostram que Paraguai perdeu muito dinheiro com Itaipu. Conduzi um estudo que divulguei em diversas apresentações públicas no Paraguai, com dados oficiais do Paraguai e do Brasil, que mostram prejuízos grandes ao Paraguai.

3. Quais seriam os valores?

Meu estudo mostra que entre 1985 e 2018 o Paraguai deixou de ganhar US$ 75,4 bilhões por vender a energia que não consome ao Brasil, a preços abaixo dos valores de mercado. Em todos esses anos de funcionamento da hidrelétrica o Paraguai usou 7,6% da energia produzida.

4. Para o Paraguai, é um valor elevado?

Esse valor é o PIB dos últimos dois anos do Paraguai. É muito dinheiro. Com esse preço a valores de mercado, o gasto público do Paraguai poderia ter aumentado 85% entre 1985 e 2018 em infraestrutura, saúde, educação.

5. Mas e o pagamento do financiamento de Itaipu, que foi feito pelo Brasil?

A Eletrobrás fez os empréstimos, mas a própria Itaipu é quem está pagando os empréstimos feitos pela Eletrobrás, ano a ano, até 2023.

6. Quais as consequências políticas do acordo?

A população não aceita mais a ideia de que o Paraguai cede a energia que não pode consumir, a energia excedente, e é obrigado a vender ao Brasil essa energia a um valor irrisório.