Correio braziliense, n. 20479, 16/06/2019. Mundo, p. 12

 

À espera da crucificação

Rodrigo Craveiro

16/06/2019

 

 

Arábia Saudita » Após participar de manifestações quando tinha 10 anos, Murtaja Qureiris  pode se tornar o prisioneiro político mais jovem a ser executado. Hoje, aos 18, acaba de enfrentar um mês de detenção na solitária. Ativistas ampliam pressão pela libertação do adolescente

Em uma demonstração de coragem, ou de inocência, o menino franzino de 10 anos anos gritava, com um megafone, do alto de sua bicicleta: “O povo exige direitos humanos!”. Murtaja Qureiris foi o único entre os amigos a se manifestar com a face descoberta. Teve o azar de as autoridades da Arábia Saudita filmarem-lhe o rosto. Pouco depois, em Awamiya, 390km a nordeste de Riad, foi flagrado em companhia do irmão, Ali Qureiris, em um passeio de moto próximo à delegacia. As autoridades capturaram Ali e o acusaram de arremessar coquetéis Molotov contra o prédio. Aos 11 anos, Murtaja enterrou o irmão, morto durante um protesto. Aos 13, perdeu a liberdade após ser preso ao viajar com a família para o Bahrein, em setembro de 2014. Cinco anos depois, ele aguarda a própria execução, em uma penitenciária para adultos em Al-Dammam, onde acaba de ser submetido a um mês de confinamento na solitária e a tortura — o mesmo castigo tinha sido aplicado durante quase 500 dias. A promotoria pediu sua crucificação.

O drama de Murtaja comoveu organizações não governamentais, ativistas de direitos humanos e líderes de vários países. Também expôs um sistema judicial draconiano, o qual não tolera qualquer tipo de expressão política ou de insatisfação em relação à Casa de Saud, a instituição da monarquia saudita. A intolerância zero a qualquer dissidência colocou Riad no olho do furacão após o assassinato selvagem do jornalista Jamal Khashoggi, torturado e esquartejado dentro do consulado saudita em Istambul (leia Memória).

Diretor da Organização Europeia pelos Direitos Humanos na Arábia Saudita, Ali Adubisi afirmou ao Correio que duas audiências do caso Qureiris foram realizadas. “As acusações dizem respeito à sua participação em manifestações e às demandas pela expressão de opiniões políticas”, explicou o ativista saudita. “No entanto, Murtaja responde por um espectro bem mais amplo de acusações: provocação de conflitos sectários, terrorismo e envolvimento em tumultos. Ele também foi acusado de carregar o alto-falante durante os protestos, quando tinha 10 anos; de disparar contra um carro diplomático e contra veículos blindados; de arremessar pedras e coquetéis Molotov em uma delegacia; de monitorar patrulhas policiais; de possuir pistolas; de usar pneus em chamas para bloquear o trânsito; e de desobedecer à lei.”

O também ativista saudita Yahia Aseri, baseado no Colorado (Estados Unidos), disse acreditar que o fato de uma pessoa tão jovem ser imputada com uma sentença de morte “mostra que o regime não respeita o direito à vida e os direitos das crianças”. “A pressão internacional poderia ajudar. Tais violações tendem a aumentar com o silêncio”, lembrou. Segundo ele, a falta de transparência por parte das autoridades sauditas impede o Ocidente de ter o exato panorama de quantas crianças e jovens estão no corredor da morte. “Se o regime se sentiu seguro após o assassinato de Khashoggi, por exemplo, isso significa que cometerá mais crimes.”

Vergonha

Adam Coogle, pesquisador da Human Rights Watch (HRW) sobre a Arábia Saudita, considera vergonhoso o fato de os promotores do país solicitarem pena de morte para qualquer criança. “Muito menos para um garoto que tinha 10 anos quando muitos de seus delitos teriam sido cometidos. A Arábia Saudita é uma das poucas nações que mantêm a sentença capital para menores infratores”, lamentou, em entrevista ao Correio. Ele acusa as autoridades sauditas de omitirem detalhes sobre os casos de Murtaja e dos demais prisioneiros, até mesmo a idade deles. “Em seis anos trabalhando sobre este país, nunca vi uma pena de morte pedida por crimes supostamente praticados em tão tenra idade. Sabemos que há outros três jovens infratores no corredor da morte. Em abril passado, uma criança também esteve entre 37 prisioneiros mortos em uma execução em massa.”

O ativista da HRW espera que a pressão da comunidade internacional possa desempenhar um papel positivo e forçar a Justiça saudita a rever o destino de Murtaja. De acordo com Coogle, no ano passado, promotores sauditas que tinham pedido a execução da xiita Isra Al-Ghongham, por crimes não violentos associados a protestos, emendaram a folha acusatória e removeram a solicitação, em meio a um clamor mundial. A esperança é de que o jovem de 18 anos que passou boa parte da infância e da pré-adolescência enfrentando o peso da lei possa obter clemência e uma segunda chance.

Pontos de vista

Por Ali Adubisi

Compromisso internacional

“Não temos certeza se a pressão internacional poderia mover a Arábia Saudita a deter a pena de morte, especialmente depois da execução de menores, em abril passado. Por outro lado, a ratificação, por parte da Arábia Saudita, da Convenção sobre os Direitos da Criança e da Convenção contra a Tortura são modos de pressioná-la a cumprir com os seus compromissos. Desde 2014, três crianças enfrentam o risco de execução. Isso se deve à grande pressão sobre os seus casos.”

Diretor da Organização Europeia pelos Direitos Humanos na Arábia Saudita

Por Adam Coogle

Sob respaldo dos EUA

“Não parece que a liderança saudita alterou seu comportamento repressivo, apesar do clamor internacional contra o assassinato de Jamal Khashoggi. A principal razão está no fato de o governo dos EUA apoiar totalmente a liderança saudita, apesar dos abusos terríveis. Até que o governo norte-americano mude sua política de apoio incondicional, será difícil vermos uma pressão suficientemente capaz de levar a liderança saudita a forçar mudanças.”

Pesquisador da Human Rights Watch (HRW) sobre Arábia Saudita

Memória

Um crime macabro

A morte brutal de Jamal Khashoggi, jornalista do The Washington Post, no consulado da Àrábia Saudita em Istambul (Turquia), despertou forte condenação da comunidade internacional e colocou em pauta as violações dos direitos humanos por parte de Riad. Em 2 de outubro de 2018, Khashoggi visitou a representação diplomática para providenciar os documentos que o permitiriam se casar com a noiva, Hatice Cengiz. Um grupo de 15 agentes sauditas vindos de Riad foi responsável por torturá-lo, executá-lo e desmembrar-lhe o corpo. Os seus restos mortais jamais foram encontrados. Crítico do regime, o intelectual residia nos Estados Unidos. Depois de negar o assassinato, a Arábia Saudita reconheceu uma operação realizada por elementos “fora de controle”. O processo de 11 suspeitos foi aberto no começo do ano pela Justiça saudita. Ativistas responsabilizam o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman por ordenar a execução. Em abril passado, familiares de Khashoggi desmentiram ter firmado um acordo com as autoridades de Riad.