O globo, n.31392, 19/07/2019. País, p. 04

 

Reação em cadeia 

Bernardo Mello 

Juliana Dal Piva 

Aline Ribeiro 

Vinicius Sassine

19/07/2019

 

 

A suspensão de investigações feitas a partir do compartilhamento de dados entre o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf ) e o Ministério Público sem autorização prévia da Justiça, determinada pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, foi recebida com apreensão na Polícia Civil do Rio de Janeiro. Delegados que coordenam apurações envolvendo atuação do crime organizado e lavagem de dinheiro argumentam que os Relatórios de Inteligência Financeira (RIFs) elaborados pelo Coaf servem de ponto de partida para investigar facções criminosas, principalmente milícias. Ontem, a Polícia Federal (PF) decidiu suspender todas as investigações em andamento, de qualquer crime, baseadas em informações de órgãos de controle financeiro sem a anuência do Poder Judiciário.

— Não estou questionando ou afrontando decisão judicial, mas a gente recebe com apreensão. Todas as investigações em curso que atuam sobre milícias usam, de certa forma, instrumentos do Coaf. É uma ferramenta fundamental. Inviabilizar o acesso a essas informações significa jogar no limbo diversas investigações —disse Gabriel Ferrando de Almeida, chefe da Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas e de Inquéritos Especiais (Draco-IE).

Segundo o delegado, o relatório do Coaf é uma ferramenta “largamente utilizada” para iniciar apurações e permite que os investigadores acompanhem o “dinamismo” das organizações criminosas. Foi possível identificar, no Rio, a partir de informações do órgão, por exemplo, movimentações suspeitas de uma empresa usada para lavar recursos da Liga da Justiça, grupo miliciano com faturamento de R$ 41 milhões entre 2012 e 2017, segundo a polícia. Após as investigações, a delegacia conseguiu bloquear R$ 11 milhões em bens do grupo criminoso, além da prisão do policial militar reformado Clayton da Silva Novaes, um dos aliados de Wellington da Silva Braga, chefe da milícia.

Um relatório do Coaf também serviu de ponto de partida para a prisão do ex-policial Rogério Augusto Marques de Brito, oRoge rinho, acusado de chefiar um grupo que atuava nojo godo bicho ena má fiados caça-níqueis. Os dados disponibilizados pelo órgão apontaram movimentações suspeitas numa loja de doces, ligada ao grupo, que fez transações na casa de R$ 2,5 milhões durante nove meses no último ano.

Informações compiladas pelo Coaf levaram ainda à apreensão de bens do ex-policial Ronnie Lessa, acusado do assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOLRJ). Um relatório do órgão apontou que, sete meses após o crime, Lessa fez um depósito de R$ 100 mil na boca do caixa, em sua própria conta. Lessa foi preso em março deste ano.

Para o procurador-geral de Justiça de São Paulo, Gianpaolo Smanio, o combate a organizações ligadas ao narcotráfico poderá ser também prejudicado, em especial investigações sobre facções que controlam o tráfico dentro e fora dos presídios.

—A informação dos órgãos de controle é muitas vezes o início de tudo. Os relatórios não são provas, são meios de prova —disse Smanio.

APURAÇÕES SUSPENSAS

Na PF, a decisão de suspender investigações baseadas em dados do Coaf foi comunicada a todos os delegados da corporação em uma mensagem enviada pelo corregedor-geral substituto, Bráulio Cézar da Silva Galloni. O texto ressalta que a instituição ainda não foi comunicada formalmente, mas a medida foi antecipada para evitar possíveis nulidades nos inquéritos em andamento.

Somente a ProcuradoriaGeral da República (PGR) recebeu, desde abril de 2017, 957 relatórios financeiros enviados de forma espontânea pelo Coaf, o que permitiu a procuradores da República nos estados e no Distrito Federal terem elementos mínimos para requisitar diligências de investigação. Não é possível precisar quantos resultaram em inquéritos.

O GLOBO apurou que, no caso do Ministério Público do Rio (MP-RJ), a decisão do presidente do STF pode impactar ao menos 38 investigações iniciadas neste ano. Há ainda inquéritos e ações penais abertos pelo MP que podem ser afetados. Um dos casos é a denúncia contra Danúbia de Souza Rangel, mulher do traficante Nem da Rocinha, e sua irmã, Telma de Souza Rangel, recebida pelo Tribunal de Justiça do Rio.

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Lava-Jato não teria acontecido sob nova regra 

Thiago Herdy 

19/07/2019

 

 

Se em 2014 um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) tivesse decidido suspender processos em que houvesse compartilhamento de dados bancários de investigados entre órgãos de inteligência, a Operação Lava-Jato não teria acontecido. Nos últimos cinco anos, delegacias da Receita Federal em todo país subsidiaram investigações em Curitiba, no Rio, em São Paulo e Brasília com documentos que traziam no alto da página quatro letras: RFFP, cujo significado é “Representação Fiscal para Fins Penais”.

A ideia por trás da decisão de Toffoli é a mesma que havia sido rejeitada pelo Congresso há dois meses. Naquele momento, deputados retiraram da medida provisória que reorganizou os órgãos da Presidência uma emenda proibindo fiscais da Receita de comunicarem policiais e procuradores sobre indícios de crimes que vão além de sua atribuição.

COMUNICAÇÃO ILEGAL

Até segunda ordem, a decisão de Toffoli torna ilegal a comunicação de crimes entre os canais restritos dos órgãos de inteligência. Na Lava-Jato, as representações da Receita e do Banco Central sempre foram tratadas como pontapé inicial de investigações, mas não o seu fim. A partir de novas confirmações de suspeita, mediante cruzamento com outras fontes de informação, seguia-se o trâmite legal, isto é, pedia-se à Justiça a quebra de sigilo fiscal e bancário de investigados. Apenas quando deferidos por um magistrado, os dados eram usados nas cortes.

Nesta segunda etapa de investigação era feito outro relatório da Receita, presente em toda Lava-Jato, desde o seu início: os IPEI, relatórios de “Informação de Pesquisa e Investigação”.

A decisão de Toffoli deixa o Brasil mal junto à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), já que para entrar no clube, é preciso cumprir uma série de requisitos, entre eles a cooperação no combate a corrupção e evasão fiscal.

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Ministro defende medida e diz que há 'defesa do cidadão'

19/07/2019

 

 

O presidente do Supremo Tribunal Federal ( STF ), Dias Toffoli, defendeu ontem sua decisão que suspendeu os processos nos quais dados bancários de investigados tenham sido compartilhados por órgãos de controle sem autorização judicial. Para ele, a medida é uma “defesa do cidadão”.

—Se o detalhamento é feito sem a participação do Judiciário, qualquer cidadão brasileiro está sujeito a um vasculhamento na sua intimidade. Isso é uma defesa do cidadão — disse, em Mato Grosso, onde visitou órgãos do Judiciário.

Toffoli disse que não dificultou o combate ao crime:

— Essa decisão não impede as investigações. Essa decisão autoriza, como foi o julgamento no Supremo e no plenário, as investigações que tiveram origem do compartilhamento global e, depois, o detalhamento com autorização judicial.

Em sua decisão, Toffoli classificou os dados bancários e fiscais em dois grupos. No primeiro, estão dados mais genéricos com montantes globais movimentados mensalmente e a titularidade das contas bancárias. No outro, estão dados detalhados sobre a movimentação financeira de investigados incluindo informações que permitem detectar a “origem ou natureza” de gastos.

Para Toffoli, todas as investigações e ações que tenham usado dados financeiros e fiscais detalhados fornecidos por órgãos de controle sem autorização prévia da Justiça devem ser suspensas. Os que usaram apenas dados genéricos podem continuar tramitando.