Correio braziliense, n. 20471, 08/06/2019. Mundo, p. 12

 

Começa a transição

Rodrigo Craveiro

08/06/2019

 

 

Desta vez, não houve discurso emotivo. Theresa May seguiu à risca o protocolo e enviou uma carta privada à direção do Partido Conservador. Na mensagem, a primeira-ministra do Reino Unido comunicava aos “tories” a renúncia como chefe da legenda e conclamava oficialmente o lançamento de candidaturas para a escolha de seu sucessor. O processo de eleição do líder conservador e do premiê deve se arrastar até o fim de julho. Nas próximas semanas, May seguirá no comando do governo, mas não terá qualquer influência no que diz respeito ao Brexit — o processo de divórcio entre Reino Unido e União Europeia (UE). Depois do referendo de 2016, em que 52% dos britânicos votaram pela separação, o abandono do bloco deveria ter ocorrido em 29 de março, mas acabou adiado para 31 de outubro.
“Ouvi a premiê falar apaixonadamente sobre alguns temas de política interna que a preocupam. May continuará concentrada em trabalhar pelo povo britânico, mas, em relação ao Brexit, disse que não corresponde a ela levar o processo adiante, e sim ao sucessor”, afirmou o porta-voz de May.
A largada para a disputa pelo poder dentro do Partido Conservador será na próxima segunda-feira. Uma primeira votação no Parlamento ocorrerá na quinta-feira. Os candidatos com menos de 17 votos estarão automaticamente eliminados. Uma segunda votação ocorrerá no dia 18, quando serão necessários pelo menos 33 votos para a sobrevivência política. Os dois candidatos mais bem votados e remanescentes no processo serão avalizados por 160 mil membros do Partido Conservador. Os “tories” votarão por meio do serviço postal, e o resultado será divulgado em 22 de julho. Os analistas apostam as fichas no ex-chanceler Boris Johnson, 54 anos, um político que defende um Brexit sem acordo com Bruxelas.
Anthony Glees, diretor do Centro para Estudos de Segurança e Inteligência da Universidade de Buckingham (Reino Unido), demonstra ceticismo em relação à forma como Boris Johnson deverá gerenciar o processo de separação da UE. “Ele até pode vencer como líder dos ‘tories’, mas será capaz de levar o Brexit com uma maioria no Parlamento contrária a uma saída sem acordo? Eu não creio”, afirmou ao Correio. “Nesse cenário, Boris teria de suspender o Parlamento e isso representaria um golpe contra a democracia parlamentar, com as mais graves consequências para o futuro. Um Brexit sem acordo significaria que a Irlanda do Norte e a Escócia abandonariam o Reino Unido. Isso envolveria a rainha e traria ainda mais caos ao país.”
Para Glees, o fracasso de Theresa May em costurar um acordo do Brexit tem uma causa simples. “A premiê não teve o discernimento para proferir uma palavra positiva aos 48% de britânicos que votaram pelos valores tradicionais do Partido Conservador: fé no mercado, competição e ausência de subsídios do governo. Ela mereceu falhar”, arrematou. O especialista acredita que os ‘tories’ pretendem que o próximo ocupante da 10 Downing Street seja alguém disposto a impulsionar o Brexit em 31 de outubro, com ou sem acordo. “Este alguém é Boris, o Jair Bolsonaro do Reino Unido, o home que disse: ‘F... os negócios’. Além de horrível, ele é incompetente e ambicioso pelo poder. Mas os conservadores perderam a sua bússola moral e estão em pânico.”
Além de Boris Johnson, seis nomes do Partido Conservador se destacam como fortes candidatos ao cargo de primeiro-ministro: o ministro do Meio Ambiente, Michael Gove, 51 anos; o chanceler Jeremy Hunt, 52; a ex-presidente da Câmara dos Comuns Andrea Leadsom, 56; o ex-ministro do Brexit Dominic Raab, 45; o ministro do Desenvolvimento Internacional, Rory Stewart, 46; e o secretário do Interior, Sajid Javid, 49. A renúncia de Theresa May não deve pôr fim aos entraves para um Brexit que tem se mostrado impossível. A UE se recusa a renegociar o acordo, e o Parlamento britânico, que vetou o pacto em duas ocasiões, não parece disposto a novas votações nem à realização de um segundo referendo.
Justiça rejeita acusação contra Boris Johnson
A Justiça do Reino Unido desconsiderou, ontem, uma ação por “má conduta em cargo público” apresentada contra Boris Johnson (foto). O ex-chanceler, favorito para substituir Theresa May na chefia de governo, era acusado de mentir durante a campanha do referendo sobre o Brexit em 2016. “Invalidamos a decisão da juíza de distrito de convocar” Johnson, disse o juiz Michael Supperstone, da Alta Corte de Londres. O ex-ministro das Relações Exteriores recorreu da decisão tomada na semana passada de intimá-lo, em função das acusações lançadas contra ele pelo empresário britânico Marcus Ball. A intervenção de Johnson na campanha do referendo foi decisiva para a vitória do Brexit por 52%. Os advogados de Ball acusam Johnson, ardoroso defensor do Brexit, de ter mentido em 2016, quando era prefeito de Londres. Na época, ele afirmou que o Reino Unido enviava 350 milhões de libras (US$ 440 milhões) por semana para Bruxelas.