O Estado de São Paulo, n.45908, 27/06/2019. Metrópole, p. A17

 

Com agenda própria, Senado reage a Bolsonaro e dá aval a armar no campo 

Mariana Haubert 

Daniel Weterman 

Renato Onofre 

27/06/2019

 

 

Estande de tiro. Possibilidade de o presidente definir por decreto quem poderá ter armas motiva críticas de parlamentares

O Senado decidiu reagir às iniciativas do presidente Jair Bolsonaro e tenta levar adiante agenda própria sobre a legislação de armas no País. Ontem, um dia após o governo editar três novos decretos e enviar projeto de lei sobre o assunto, o plenário do Senado aprovou em votação relâmpago a permissão para moradores do campo usarem armas em toda a extensão da propriedade rural – e não apenas na sede.

Outro texto aprovado prevê que moradores da zona rural, a partir de 21 anos, poderão adquirir armas de fogo para segurança da família e da propriedade. Ambos os textos alteram o Estatuto do Desarmamento, de 2003, e vão agora para a Câmara. Além disso, ao menos outros quatro projetos sobre o tema foram protocolados ontem no Senado – um deles do PSL, sigla do presidente, recuperando integralmente o decreto editado por Bolsonaro em maio que flexibilizava as regras para porte.

O projeto sobre posse no campo aprovado pelo Senado ontem é de autoria de Marcos Rogério (DEM-RO). O texto passou em poucas horas na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e no plenário.

Segundo o parlamentar, a mudança corrige um equívoco do Estatuto, que autoriza a posse de arma de fogo no interior das residências e no local de trabalho, mas não trata da situação dos imóveis rurais – com a mudança, um proprietário ou gerente de fazenda pode andar armado em toda a área.

Mais à noite, o Senado aprovou o projeto que concede o direito de compra de arma no campo a partir dos 21 anos. Hoje, na área rural, só é permitida a posse para caçadores que buscam prover a subsistência de suas famílias, com idade mínima de 25 anos.

Para ter esse direito, os interessados deverão apresentar documento de identificação pessoal, comprovante de moradia e atestado de bons antecedentes. Um ponto alvo de críticas foi a eliminação de requisitos, como comprovação de capacidade técnica e de aptidão psicológica, para o manuseio de arma de fogo no caso de proprietários rurais. Houve proposta para limitar a posse a só uma arma de fogo no campo – rejeitada.

Desde a edição dos decretos presidenciais, em maio, parlamentares reclamam de como o governo tratou a questão das armas, ao propor as mudanças por atos presidenciais – ou seja, sem o aval do Legislativo.

Ontem, Marcos Rogério criticou o novo projeto de lei apresentado pelo governo, pois prevê que o Executivo poderá definir, por conta própria, quem poderá ter direito ao porte de armas no País. “O governo, nessa matéria, está perdido”, disse, lembrando que o Senado aprovou na semana passada a derrubada dos decretos de Bolsonaro, de maio, que previa a definição das categorias profissionais com direito a porte via decreto.

A análise desses atos presidenciais seriam analisadas pela Câmara esta semana, mas o Planalto cancelou as medidas antes da apreciação. Os textos eram alvo ainda de cinco ações no Supremo Tribunal Federal.

Questionado sobre o projeto de lei proposto anteontem pelo governo (que também previa a posse estendida para o morador da área rural, uma promessa eleitoral de Bolsonaro), o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), disse ontem que a análise do texto ficará somente para agosto.

Mourão. Ao comentar as dificuldades enfrentadas pelo governo, o presidente em exercício, Hamilton Mourão, disse ontem à Rádio Gaúcha que os atos do Executivo sofrem contestação porque “não é da visão do presidente” construir uma maioria “permanente” no Legislativo. “No caso específico das armas, é um tema polêmico e caro ao governo, porque fez parte da campanha, do ideário do presidente Bolsonaro, e ele buscou a solução que considerava a mais correta”, disse. “Concordo com a forma como ele procedeu.”/ COLABOROU AMANDA PUPO

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Decretos vigentes facilitam posse e beneficiam atiradores 

Marco Antônio Carvalho

Tulio Kruse 

27/06/2019

 

 

Seis meses e sete decretos depois, o governo do presidente Jair Bolsonaro tem hoje um saldo de facilitação de acesso a armas para civis, com opções mais potentes à disposição dos cidadãos, além de benefícios para categorias de atiradores esportivos, colecionadores e caçadores.

O tema foi eleito desde janeiro pela nova gestão federal como prioritário. Apesar da pressão para recuar em alguns pontos, como a concessão de porte de arma a 19 categorias profissionais, Bolsonaro manteve vigentes três decretos cujo conteúdo já representa uma flexibilização da política de desarmamento vigente desde 2003.

Entre idas e vindas, está mantida, por exemplo, a facilitação para aquisição de armas de fogo para ser mantidas no interior de casas e comércios. O Decreto 9.845, um dos três vigentes, prevê que deve ser presumida a veracidade da declaração de efetiva necessidade apresentada pelo cidadão para aquisição da arma.

O indeferimento do pedido, diz o texto, só poderá ter como fundamento uma eventual falsificação dos documentos necessários, como um “nada consta” de antecedentes criminais, ou ainda se o autor do pedido tiver vínculo com grupo criminoso.

“O que vimos foi o governo dividir e reempacotar o decreto, com interesse de evitar carimbos de ilegalidade que viriam da Câmara e do Supremo (Tribunal Federal). O comportamento mostra bagunça e falta de confiança ao lidar com o assunto”, diz o gerente do Instituto Sou da Paz, Bruno Langeani.

Continuam em vigência também as regras com benefícios para o grupo de colecionadores, atiradores esportivos e caçadores (os CAC). O mesmo decreto prevê que os CAC poderão adquirir até mil munições anuais para cada arma de fogo de uso restrito e 5 mil munições para as de uso permitido. O texto ratifica ainda a permissão para que a categoria porte arma de fogo curta municiada sempre que estiver em deslocamento para treino ou competições.

Já o decreto 9.846 prevê o limite de cinco armas de cada modelo de calibre permitido para colecionadores, 15 armas para caçadores e 30 armas para atiradores. A mesma quantidade é prevista também em relação às armas consideradas de uso restrito, totalizando dez armas de cada modelo para colecionadores, 30 para caçadores e 60 para atiradores.

Indefinição. “Isso cria enorme insegurança jurídica para os profissionais que terão de lidar com o assunto e, no limite, representa a política do descontrole atuando de propósito para confundir”, diz Renato Sérgio de Lima, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “O descontrole vai cobrar seu preço com vidas e violência, o que o País realmente não merece.”

A discussão sobre armas, diz ele, faz com que o governo deixe de lado medidas efetivas na segurança pública. “O governo não se preocupa com os reais problemas da população e age para impor sua agenda, ainda que isso ocorra em desrespeito ao Legislativo e Judiciário.”

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Não se deve ludibriar Congresso e Justiça 

27/06/2019

 

 

Todas essas mudanças – nas regras do porte e posse de armas – precisam ser feitas pelo Congresso, por um projeto de lei, e não por um decreto, exatamente para que sejam discutidas com a sociedade. Não é meramente uma questão formal, mas há claramente a necessidade de discutir essas regras com a população.

Nesses textos que foram sancionados pelo presidente já foram constatados vários erros. Se o processo legislativo estivesse sendo seguido, as chances de equívocos e recuos como os que estamos vendo seriam menores porque o assunto seria debatido com especialistas, entidades, ONGs e diversos pontos de vista seriam colocados e levados em consideração.

Seguindo o trâmite de um projeto de lei, se discutiria previamente todas essas questões que agora estão sendo criticadas e alteradas a todo momento pelo governo. Durante a discussão de um projeto de lei, se decidiria, por exemplo, quem vai poder ter o porte, em que situações, que tipo de arma, etc.

Ao não seguir o processo correto, já tivemos erros graves. É o caso do primeiro decreto que autorizou a aquisição de fuzil. Agora, o novo texto libera uma enorme quantidade de munição. É uma contradição e imprudência. Quem compraria esse volume todo apenas para uso próprio? Abre brecha para que o mercado negro seja abastecido, colocando ainda mais munição nas mãos de milícias e de facções criminosas.

Outra situação bem grave na decisão do governo é que o decreto foi revogado às vésperas de um julgamento e da apreciação da Câmara. Me parece uma tentativa clara do governo de driblar os poderes Legislativo e Judiciário no cumprimento de suas obrigações, que atuam como mecanismos de controle do Executivo. É muito grave a utilização dessa estratégia, já que impede o livre exercício desses poderes. Se ele continuar agindo reiteradamente dessa forma, ludibriando a ação das outras esferas, pode se configurar até crime de responsabilidade.