O globo, n. 31360, 17/06/2019. País, p. 4

 

Projetos sem lastro

Silvia Amorim

17/06/2019

 

 

Governo não apresenta dados técnicos para alterar leis de trânsito e de acesso a armas

Duas das medidas mais polêmicas tomadas pelo presidente Jair Bolsonaro foram apresentadas sem dados técnicos que comprovem sua eficácia: a flexibilização da posse de armas e as mudanças no Código de Trânsito Brasileiro (CTB). Documentos elaborados pelos ministérios da Justiça e Segurança Pública e da Infraestrutura, respectivamente, não expõem estudos ou estatísticas que justifiquem as mudanças.

Para defender a necessidade das iniciativas, o governo apresentou dois documentos. No caso das armas, a Exposição de Motivos 08/2019 foi assinada pelos ministros Sergio Moro (Justiça) e Fernando Azevedo e Silva (Defesa); e a Exposição de Motivos 36/2019, referente a alterações no CTB, chancelada pelo ministro da Infraestrutura, Tarcísio Freitas. Elas têm em comum a ausência de pesquisas, números ou evidências acadêmicas para fundamentar as medidas.

A facilitação da posse e do porte de armas está sendo questionada no Supremo Tribunal Federal (STF), e o projeto com mudanças no CTB foi recebido com críticas na Câmara.

A principal evidência usada pelo governo para justificar o decreto que flexibiliza a posse de armas é um artigo escrito pelo chefe de assuntos legislativos de Moro, Vladimir Passos de Freitas. O documento do governo afirma que comerciantes de áreas urbanas e habitantes da zona rural convivem com um quadro “insustentável” de “mortes abusivas”. Mas o único número mencionado é o resultado do plebiscito de 2005 sobre o comércio de armas. Na época, 64% votaram a favor da venda de armas.

— Os decretos carecem de evidências. Não conseguiram provar tecnicamente que a arma tem efeito positivo na segurança pública e estruturaram as justificativas tão somente no direito individual e na liberdade das pessoas — diz o diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima.

Mudanças no trânsito

Para o projeto de alteração do CTB, a principal justificativa é que ele “se faz necessário diante do avanço tecnológico”. Ele afirma que o objetivo é reduzir acidentes e mortes, mas também não apresenta dados.

Ao propor o fim das penalidades em relação ao uso da cadeirinha para as crianças, por exemplo, o texto diz apenas que a mudança é “providência para evitar exageros punitivos”. O uso do equipamento é tema de estudos em todo o mundo. O mais importante deles, feito pela Organização Mundial de Saúde (OMS), concluiu que o uso do equipamento reduz em até 19% a chance de lesões graves e em 60% a de mortes. No Brasil, pesquisa nacional feita no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP) constatou que a hospitalização de crianças por acidente de trânsito caiu 37% desde que o equipamento passou a ser obrigatório.

— É vida de criança. Não dá para ser decisão política. Tem que ser técnica — diz Gabriela Freitas, gerente da ONG Criança Segura.

Segundo a entidade, acidentes de trânsito são a principal causa de morte acidental de crianças e adolescentes até 14 anos no país — cinco mil casos entre 2001 e 2017.

Para por fim às multas a quem estiver com os faróis desligados nas estradas durante o dia, o argumento do go ver noé o desgaste causado às lâmpadas ,“as quais não foram produzidas para permanecerem acesas durante todo o tempo”.

A medida contraria recomendação do Denatran, que, em nota técnica, em 2016, destacou que o farol reduz acidentes. “Muitos estudos constataram uma redução entre 5% e 10%”, diz anota.

No caso do aumento do limite de pontuação para perda daCNHde20p ara 40 pontos, o governo expõe o seguinte motivo: “Alcançar 20 pontos está cada dia mais comum na conjuntura brasileira”. Dados oficiais do Detran de São Paulo, o maior do país, mostram que apenas 6,4% dos motoristas do estado têm mais de 19 pontos na carteira.

A proposta de acabar coma exigência do exame toxicológico para caminhoneiros é justificada

pelo fato de que os testessã oca rose“apresentam dúvidas sobre a exatidão ”. Estudo feito pelo Ministério Público do Trabalho em 2015 consta touque 34% dos caminhoneiros usavam drogas, sendo a cocaína amais procurada.

Procurado, o Ministério da Infraestrutura não se pronunciou sobre a falta de dados para embasar o projeto de lei. Informou que a proposta tem o objetivo de modernizara legislação de trânsito, “que tem mais de 20 anos”.

Segundo nota, é preciso “desburocratizar processos, retirar entraves, facilitar avidado cidadão ”. A pasta acrescentou: “Com a proposta encaminhada ao Congresso Nacional, o governo pretende ampliar o debate e a participação de toda a sociedade, preservando a segurança e penalizando condutas de risco”.

O Ministério da Justiça não se manifestou.

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Do abacate ao Peso Real, a agenda paralela do presidente

Marlen Couto

Rayanderson Guerra

17/06/2019

 

 

Desde a posse, Bolsonaro tem surpreendido ao anunciar medidas que não fazem parte da agenda prioritária de reformas

Nos seis primeiros meses de governo, o presidente Jair Bolsonaro tem surpreendido até mesmo auxiliares mais próximos com anúncios de medidas que não fazem parte da agenda prioritária de reformas. Enquanto o texto da reforma da Previdência era discutido na Comissão Especial, o presidente esteve na Câmara para entregar a proposta de alterações no Código de Trânsito, no início do mês. A iniciativa foi classificada como “falta de noção de prioridade” pelo presidente da comissão, deputado Marcelo Ramos (PR-AM).

As propostas de trânsito ainda estavam sendo conhecidas quando, dois dias depois, o presidente e o ministro da Economia, Paulo Guedes, em viagem à Argentina, anunciaram que o Brasil e o país vizinho pretendiam avançar com a proposta de criar uma moeda comum, o “peso real”. O anúncio logo foi desmentido pelo Banco Central brasileiro.

Bolsonaro celebrou pelo Twitter, em maio, a abertura do mercado argentino para o abacate brasileiro, que representa apenas 0,007% do valor total das exportações brasileiras, depois de prometer “acabar com o fantasma” da importação de banana do Equador, com a restrição à entrada do produto no país.

O presidente também surpreendeu ao afirmar, no início do mês, que há estudos no governo para a troca das cédulas de R$ 100 e R$ 50 com o objetivo de obrigar que o dinheiro seja depositado no sistema financeiro ou colocado em circulação.

Outro caso emblemático é a proposta de transformar a Estação Ecológica de Tamoios, em Angra dos Reis (RJ), em uma espécie de Cancún brasileira. Nessa região, Bolsonaro foi multado pelo Ibama por pesca ilegal em 2012.

O cientista político e professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais Malco Braga Camargo afirma que, em casos como esses, o Judiciário e o Legislativo devem servir como peso e contrapeso do Executivo.

—Tanto o Legislativo quanto o Judiciário devem controlar esses rompantes para que algumas pautas possam ser contidas. E isso deve acontecer em alguns casos, já que não vemos nesse governo a tentativa de convencer esses atores de seus ideais e de usar a expertise técnica para a estruturação das propostas —afirma o pesquisador.

O professor da USP e cientista político Gaudêncio Torquato acredita que parte das declarações e ideias do presidente é resultado da falta de articulação política.

—Diante dos conflitos que vêm do Executivo, a área política, ao perceber a instabilidade do comportamento do Bolsonaro, tende a criar uma pauta própria, dentro dos anseios da população —afirma o professor.