Valor econômico, v.20, n.4799, 24/07/2019. Opinião, p. A10

 

Cheque especial 

Rubens Sardenberg 

24/07/2019

 

 

A Febraban tem incentivado o debate sobre as taxas de juros e o custo do crédito em nosso país. O professor Jairo Saddi, autor de livros de referência na área do direito econômico, trouxe uma importante contribuição a esse debate com o artigo sobre "Cheque Especial", na edição de 24 de junho neste jornal.

É oportuna a lembrança do professor, de que o cheque especial tem características de serviço emergencial, por curto prazo, para despesas imprevistas, o que se refletiria em seu alto custo. Mas ele também afirma que só existe cheque especial no Brasil por que há uma "evidente restrição de crédito, que é escasso e volátil; e, mais adiante, no artigo, argumenta que os "os quase 300% de juros refletem o fato de que há pouco crédito na praça para a população carente".

Aqui temos algumas discordâncias importantes, tanto em relação ao volume de crédito ofertado em nosso mercado, como sobre o nível das taxas praticadas. A afirmação de que a utilização do cheque especial é motivada por uma suposta "restrição de crédito" não parece compatível com o fato de que o crédito bancário cresceu de forma significativa nos últimos quinze anos, geralmente em ritmo superior ao do PIB.

O saldo das operações de crédito evoluiu, de pouco menos de 24% do PIB em 2004, para quase 54% do PIB em 2015. Caiu com a recessão, mas voltou a subir nos últimos anos, mesmo com a fraca recuperação da economia. Em maio de 2019, chegou a 47,2 % do PIB. A expansão do crédito total a pessoas físicas, nos doze meses terminados em maio, foi de 9,9%. O saldo das operações de crédito para as famílias atingiu R$ 1,8 tri em maio - dos quais, apenas R$ 25 bilhões (1,4%) na linha de cheque especial. Não nos parece razoável, portanto, vincular as taxas de juros do cheque especial a alguma suposta escassez e/ou volatilidade na oferta de crédito.

Outra questão que merece esclarecimento é o nível efetivo das taxas de juros do cheque especial, tema pouco compreendido em nosso debate econômico. Seguindo padrões internacionais, o Banco Central divulga as taxas de juros em base anual, com a sistemática de juros compostos. O percentual de 300% (12,2% ao mês) para o cheque especial, mencionado pelo professor Saddi, representa o custo de uma operação de um ano, sem nenhum pagamento de juros, nem de principal. Mas esta não é a realidade do cliente médio do cheque especial, que usa esta linha por aproximadamente 24 dias, normalmente pagando principal e juros. Calculando o custo desse cliente, usando juros simples, e não compostos, chegaríamos a uma taxa de 146% ao ano. Sem dúvida, uma taxa alta, mas bem abaixo do número que costuma ser citado.

Os bancos concordam que mesmo a taxa de 146% ao ano é bastante elevada e precisa ser reduzida. Afinal, segundo o Banco Central, cerca de 16 milhões de pessoas utilizam efetivamente o cheque especial - número expressivo, embora represente não mais do que 15% da população bancarizada do país.

A autorregulação implementada pela Febraban, a partir de julho do ano passado, foi um importante passo nesse sentido. Com ela, o cliente é avisado automaticamente assim que "entra" no cheque especial, e informado de que poderá transferir o débito para uma outra linha de crédito mais barata. Se permanecer por mais de um mês utilizando mais de 15% de seu limite de crédito, recebe uma oferta ativa do banco, sugerindo a troca por empréstimo parcelado, com juros menores: entre julho do ano passado, e abril deste ano, mais de 9,5 milhões de dívidas de clientes no cheque especial, com juros médios em torno de 12%, migraram para o crédito parcelado, e passaram a pagar pouco mais de 3% mensais.

O saldo desse novo tipo de empréstimo parcelado do cheque especial já supera R$ 14 bilhões, comparado com os R$ 25 bilhões do cheque especial tradicional. Esta iniciativa é importante, por afastar do cheque especial clientes muito endividados, em geral com baixa educação financeira, e preservar o produto para quem o utiliza adequadamente, em emergências e por pouco tempo; como um usuário de ônibus que opta por um táxi quando está atrasado para um compromisso importante.

Outra medida que trouxemos ao debate e pode trazer uma queda significativa nas taxas é a possibilidade de cobrança de tarifa pelo uso do produto, como fazem, inclusive, vários países com sistemas bancários bastante desenvolvidos. Discordamos da avaliação do professor Jairo de que esta alternativa seria regressiva e não traria reflexos positivos para redução do custo nessa modalidade de crédito.

A sistemática atual é que nos parece regressiva, além de conter subsídios cruzados. Por determinação regulatória, os bancos têm de alocar capital para cobrir o risco de oferta do cheque especial, mesmo para os clientes que não utilizam o limite de crédito recebido. Também por determinação regulatória, não podem cobrar tarifa pela disponibilização do limite não utilizado, uma comodidade que sai a custo zero para estes clientes. Todos estes custos se refletem nas taxas praticadas no produto, e pesam muito sobre os que o utilizam. Uma precificação que combine tarifas e taxas de juros poderia resolver ou, ao menos, atenuar esta distorção.

Ao finalizar seu artigo, o professor Saddi afirma que a solução dos problemas mencionados por ele passa por estímulos à concorrência, inclusive das fintechs, e não por mais regulação. Concordamos integralmente. A Febraban e seus associados consideram a concorrência a melhor maneira de garantir a eficiência do sistema bancário. Cabe lembrar aqui que relatório recente do BC considera nosso mercado bancário, apesar de concentrado, um mercado com bastante competição.

Ainda assim, novas medidas que busquem uma ampliação da concorrência em condições de igualdade regulatória para todos os participantes do mercado, os atuais e os novos, contarão sempre com o apoio dos bancos. Mas, como temos alertado, isto não basta. É preciso reduzir os custos elevados de intermediação financeira em nosso país, que oneram a atividade de emprestar e elevam as taxas ao consumidor final em todos os produtos de crédito. Inclusive no cheque especial.