O globo, n. 31324, 12/05/2019. País, p. 4

 

De onde virá o tiro?

Renata Mariz

12/05/2019

 

 

 Recorte capturado

Decreto tornará mais difícil a elucidação de crimes como homicídio

Festejado pelos grupos favoráveis à liberação de armas no país, o decreto editado pelo presidente Jair Bolsonaro na última semana tende a dificultar investigações de homicídios e potencializar riscos de desvios de munições. O alerta vem dos próprios profissionais que lidam diretamente no combate à criminalidade, além de estudiosos do fenômeno da violência.

O crescimento de cem vezes — de 50 para 5 mil por ano — na quantidade de munições que civis podem comprar, sem exigência de que esse material passe a ser marcado com número de lote para controle, é um dos pontos mais preocupantes.

As regras foram além para profissionais de segurança e para os CACs (caçadores, atiradores e colecionadores), que passaram a não ter qualquer limite para adquirir cartuchos. Embora em vigor, o decreto enfrenta contestação no Congresso e pode ser suspenso pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Munições não marcadas corresponderam a cerca de 74% de todo o acervo vendido legalmente no Brasil em 2018.

Isso porque apenas cartuchos comercializados a órgãos públicos precisam ter número de série gravado. Para piorar esse quadro, com o decreto, as polícias passam a ter o direito de usar cartuchos apreendidos do crime (em geral sem qualquer marcação de lote). O resultado prático é que ficará mais difícil saber a origem de um tiro que atingiu um inocente durante uma operação policial, por exemplo.

Domínio paramilitar

Da mesma forma, a liberação de diversos calibres de uso restrito, agora permitido a todos que tiverem porte, e não mais para corporações específicas, dificulta investigações. Em meio a uma chacina, se a polícia identifica um cartucho 9 mm, poderia começar averiguando quais são as instituições com acesso a esse tipo de armamento, explica Bruno Langeani, gerente do Instituto Sou da Paz:

— Essa diferenciação de calibres permitidos e restritos ajudava muito no direcionamento das investigações. Mas agora todo mundo pode tudo. O colecionador, o civil, o guarda municipal têm acesso à 9 mm. Perde-se, portanto, esse indício inicial que muitas vezes ajudava na apuração. Segundo Langeani, o fato de o policial poder usar sua arma pessoal em serviço, outra regra criada pelo decreto, é mais um fator de falta de padronização e de controle dentro das instituições. Ele aponta que as novas diretrizes editadas pelo governo vão colaborar para o domínio territorial de grupos paramilitares:

— É uma avenida aberta para o fortalecimento de milícias, que, no Rio de Janeiro, têm participação de policiais e bombeiros da ativa. Agora, sem teto de quantidade de munição, sem precisar prestar contas de como usou e com mais disponibilidade de armas, não vai haver tanta barreira para os grupos se armarem. Na avaliação do presidente do Colégio Nacional de Secretários de Segurança Pública, Maurício Barbosa, titular da pasta na Bahia, será preciso fazer uma série de ajustes nas novas regras:

—Se é que esse decreto tem validade jurídica, carece de aperfeiçoamentos, pois não é razoável retrocedermos na questão do controle das munições, tendo em vista o problema ainda hoje comum de desvios nas corporações. Barbosa é categórico em dizer que o decreto liberando o porte de ar masa 20 categorias traz riscos às pessoas que passarão a andar armadas, devido à falta de preparo para reagira uma investida de criminosos, e não atende aos interesses do setor da segurança pública.

—Essa liberação de porte de armas atende necessariamente a um anseio do presidente da República e nunca foi ventilado pelo colégio de secretários de Segurança— ressalta Barbosa.

Os riscos às investigações, decorrentes do afrouxamento do controle de armas e munições, tendem a afetar os já alarmantes índices de impunidade nos crimes de homicídio, que atingiram a marca de 57 mil, em 2018. Não há dados oficiais sobre a taxa de crimes não elucidados no país.

Uma pesquisa do Monitor da Violência, projeto do G1 em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, estima que somente 24,7% dos assassinatos têm o autor identificado e denunciado em um ano. O monitoramento envolveu todas as mortes de uma semana aleatória de 2017.

Sem culpados

Uma outra pesquisa do Instituto Sou da Paz, com dados de seis estados, constatou variações na taxa de denunciados por homicídios dolosos, no período de dois anos e meio, de 4,3% no Pará a 55,2% no Mato Grosso do Sul. Os baixos níveis de elucidação são apontados como o grande fator de impunidade.

O sargento da Polícia Militar de Santa Catarina Elisandro Lotin de Souza, presidente da Associação Nacional de Praças Policiais e Bombeiros Militares Estaduais (Anaspra), afirma que os efeitos do decreto serão sentidos pelos profissionais já na hora de atenderas ocorrências. Ou seja, antes mesmo da fase de investigação. Para ele, a liberação do porte de armas colocará o policial ainda mais em risco durante o trabalho:

—Antes do decreto, existia a presunção de que não haverá uma arma envolvida numa ocorrência corriqueira, como perturbação do sossego alheio, que é o que mais se atende no Brasil inteiro de quinta-feira a sábado à noite. Agora, com o decreto, não há mais essa presunção. A Associação Brasileira de Criminalística, o Conselho Nacional de Chefes de Polícia Civil e o Conselho Nacional de Comandantes Gerais das Polícias e Corpos de Bombeiros do Brasil foram procurados, mas não retornaram.

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Até 1997, porte ilegal de arma era apenas contravenção penal

12/05/2019

 

 

Antes da edição do Estatuto do Desarmamento, em 2003, qualquer pessoa com mais de 21 anos podia ter arma, desde que tivesse um registro estadual para tanto. A compra de armas era possível —e legal —em lojas de artigos desportivos e de departamentos.

Em alguns estados, munições podiam ser encontradas em lojas de ferragens. Os registros eram feitos desde que o requerente se enquadrasse em critérios como “idoneidade, comportamento social produtivo, capacidade técnica e aptidão psicológica para o manuseio de arma de fogo”. Propagandas da fabricante Taurus apontavam benefícios de se ter arma. A segurança era o principal deles.

Até 1997, o porte ilegal de arma de fogo era enquadrado como contravenção penal, não crime —o que implicava pena de 15 dias a seis meses de prisão, ou multa. Naquele ano, durante o governo Fernando Henrique, foi aprovada uma lei que criminalizou o porte sem autorização.

A elevação do número de homicídios e dos casos de violência entre o fim da década de 1990 e o começo de 2000 encorajou o novo legislativo eleito em 2003 para que encampasse a pauta do governo recém-chegado de propor do desarmamento. A lei aprovada no primeiro mandato de Lula impôs restrições ao porte de armas por civis e estabeleceu critérios subjetivos para a concessão dos registros, como a comprovação de efetiva necessidade, liberada somente por um delegado da Polícia Federal mediante análise individual de cada caso.

A lei também especificou no Código Penal os crimes de comércio ilegal e tráfico internacional de armas, e ampliou as penas para o porte de arma em situação irregular. Não havia no Brasil, ainda, o Sistema Nacional de Armas (Sinarm), criado naquele ano para servir como banco de dados com as características das armas em circulação, permitindo rastreamento em investigações.

No primeiro ano após o estatuto, o número de homicídios caiu e o de armas em circulação também. Mas, com o passar dos anos, os efeitos passaram a ser menos percebidos nos dados de violência, que voltaram a subir. Esse é o principal argumento dos grupos pró-armas.