O globo, n. 31331, 19/05/2019. Sociedade, p. 39

 

A educação sem rumo

Paula Ferreira

Raphael Kapa

19/05/2019

 

 

Falhas de gestão do governo agravam gargalos do setor e ameaçam metas

Nos cinco primeiros meses de governo Bolsonaro, os problemas centrais da Educação não foram atacados. Além da incapacidade de gestão que paralisou o setor, o curto período foi marcado por uma troca de ministro e o contingenciamento de R$ 7,4 bilhões nas despesas discricionárias (as não obrigatórias, que excluem salários e aposentadorias) do MEC, principal motivação das manifestações que paralisaram o país na semana passada. Seis especialistas ouvidos pelo GLOBO listaram os temas urgentes da área nos quais o governo federal deveria estar se concentrando ao menos desde janeiro.

São eles: o financiamento do ensino básico, que precisa ser negociado com o Congresso ainda neste ano e afeta cerca de 40 milhões de alunos em todo o país; a formação de professores, inadequada em todos os níveis; a distorção idade/série, em especial no ensino médio (no qual 28,2% dos alunos não estão na série em que deveriam); o acesso ao ensino superior, que precisa chegar a 50% da população adulta até 2024; os cortes de bolsas de pós-graduação, que ameaçam a produção científica; e a alfabetização — mais da metade dos alunos chega ao terceiro ano do ensino fundamental com níveis insuficientes em leitura e matemática.

Após não dar destaque ao tema Educação durante a campanha eleitoral, Jair Bolsonaro assumiu a Presidência sem um plano de governo para lidar com a série de desafios que herdou em uma das áreas prioritárias para o desenvolvimento do país. De janeiro a maio, o MEC já teve dois titulares (Ricardo Vélez Rodríguez e, desde abril, Abraham Weintraub) e dezenas de trocas em cargos-chave de secretarias e autarquias — como o Inep, responsável pelo Enem. Foi apresentado um decreto de impacto para a área, sobre a nova Política Nacional de Alfabetização, sem detalhamento nem orçamento.

'Lente ideológica'

Para os especialistas, o governo olhou a Educação com uma lente ideológica, adotando medidas cosméticas, como a criação de uma comissão de revisão do Enem. E demonstrou falta de estratégia de comunicação ao sugerir que o bloqueio das verbas universitárias seria determinado por critérios morais (instituições que permitem “balbúrdia” seriam punidas), e não técnicos.

A primeira grande consequência prática dos erros na gestão do MEC pôde ser vista nas ruas de todo o país na última quarta-feira, quando centenas de milhares de pessoas protestaram contra o governo e suas ações (ou inações) na Educação. O MEC foi procurado para responder às críticas dos especialistas, mas não retornou o contato.

1 Renegociação do FUNDEB

Cerca de 85% do custo médio de cada aluno do ensino básico público é pago pelo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), cuja verba vem dos impostos dos três níveis de governo eére distribuída de modo a evitar desigualdades entre regiões. O valor, que neste ano está estimado em R$ 156 bilhões, é estipulado de acordo com o número de alunos e o segmento em que eles estão. Em 2007, o fundo foi remodelado, com vigência até 2020 — sua nova formulação precisa ser debatida pelo Congresso Nacional ainda neste ano.

Especialistas afirmam que a participação do Executivo é fundamental para o futuro do fundo. Oficialmente, o MEC ainda não se posicionou sobre o assunto, mas, segundo O GLOBO apurou, em reunião anteontem com o Conselho Nacional de Secretários de Educação e a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação, o ministro Abraham Weintraub afirmou que vai propor um novo Fundeb “mais parrudo”, e disse que o MEC vai privilegiar o direcionamento de novos recursos, quando surgirem, para o fundo. Prometeu ainda ser o “representante dessa trindade”, e foi aplaudido.

— Em um cenário sem o Fundeb, o município mais rico teria cerca de R$ 56 mil anuais por aluno. Na outra ponta, haveria cidade com R$ 450 anuais por aluno. Com o Fundeb, a diferença cai para R$ 9,5 mil para o mais rico e R $2,9 mil para o mais pobre. O abismo se reduz enormemente, mas se pode aperfeiçoar ainda mais essa distribuição — afirma Caio Callegari, coordenador de projetos do Todos pela Educação.

2 Promessa de alfabetização

Segundo o IBGE, 7% dos brasileiros de 15 anos de idade ou mais (11,5 milhões de pessoas) eram analfabetos em 2017. O MEC, ainda na gestão do ex-ministro Ricardo Vélez, definiu a alfabetização como prioridade. Um decreto foi feito sobre o tema, mas sua implementação não foi explicitada, e as polêmicas continuaram.

Um adelas diz respeitoà valorização do método fônico— em que as crianças aprendem as palavras após associar um aletra aseu som— como metodologia para erradicar o analfabetismo. Especialistas apontamquen ã ose deve elege rum único método e que o tema possui outros desafios. Andressa Pellanda, coordenadora de políticas educacionais da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, lembra que a meta 9 do Plano Nacional de Educação, que é elevar a taxa de alfabetização de jovens e adultos, não foi cumprida nas gestões passadas.

— A meta diz que era necessário elevar a taxa de alfabetização da população com 15 anos ou mais para 93,5% até 2015 e, até o final da vigência deste P NE (2024), erradicar o analfabetismo absoluto e reduzirem 50% a taxa de analfabetismo funcional—afirma Andressa. O contingenciamento chegou a essa área, que tinha R$ 34 milhões previstos no orçamento e sofreu bloqueio de R$ 14 milhões.

A alfabetização infantil também deverá ter impactos. Para economizar, o MEC mudou o escopo da avaliação que verifica a alfabetização de alunos do ensino fundamental: antes, o teste era com todos os estudantes do 3º ano; agora, apenas parte dos alunos do 2º ano será avaliada. A prova, assim como o Enem, é aplicada pelo Inep, autarquia que acabou deter seu terceiro presidente nomeado pelo governo Bolsonaro, anteontem.

3 Formação de professores

Salários baixos, jornadas em mais de uma instituição e pouca atratividade. A licenciatura é considerada por especialista uma das prioridades para o progresso da Educação, masa atual gestão não apresentou proposta para o tema.

— O governo federal nem começou afalar da baixa atratividade da carreira docente e da formação desse professor na universidade. Hoje, ela é extremamente divorciada da realidade das escolas — afirma Claudia Costin, professora Centro de Excelência e Inovação em Política da Fundação Getulio Vargas.

Ela lembra que, nos últimos dias do governo Temer, o MEC apresentou uma Base Nacional para guiar o que um futuro professor deveria aprender na faculdade. Quando o ex-ministro de Bolsonaro Vélez Rodríguez assumiu a pasta, retirou o texto para reformulação e, desde então, ele está engavetado. Hoje, 42% dos docentes lecionam um conteúdo sem ter formação específica para ele.

—Para ter uma boa educação, é necessário um bom professor. Hoje, a formação é excessivamente teórica e não prepara para dar aula. Você tem, por exemplo, três anos de Matemática e seis meses de licenciatura para dar aula. Isso é uma responsabilidade do MEC que não está sendo discutida. Claudia Costin também afirma que a carreira tem que ser valorizada desde o acesso.

—Tem que tornar mais difícil ser professor, mas também mais atrativo. Hoje, quando você pergunta para jovens de 15 anos, só 2,9% dos alunos dizem que querem dar aulas. Quando chega a hora de fazer o vestibular, um número muito grande escolhe Pedagogia porque é menos competitiva e pode conseguir um diploma. O Chile, por exemplo, exige uma nota mínima no exame de seleção para entrar na área de Educação.

4 Alunos ficando para trás

A reforma do ensino médio, ainda não implementada, é vista como solução para atenuar um dos principais problemas da Educação: a distorção entre a idade dos alunos e a série que cursam. No segmento, que tem 7,7 milhões de matriculados, 28,2% dos estudantes estão fora da idade regular referente ao ano que estudam e, entre aqueles na idade regular, somente 68,4% dos jovens estavam matriculados em 2017. Para Andressa Pellanda, os cortes na educação básica implicam no descumprimento do Plano Nacional de Educação, o que deve piorar esse cenário.

—Os cortes criam um aumento da exclusão escolar e o aprofundamento da má qualidade das escolas. A falta de investimento em educação impacta em indicadores sociais decrescentes e no aguçamento das desigualdades sociais e regionais — afirma Andressa, ao mencionar o índice de abandono do ensino médio, de 6,1%. Claudia Costin afirma que essa dificuldade é um acúmulo que vem desde a alfabetização, e que a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) precisa ser implementada para diminuir essas distorções.

—É necessário criar um programa de alfabetização que funcione. Mas isso implica olhar com mais atenção para a pré-escola, por exemplo, e implementar o que está sendo proposto na BNCC. Essas crianças que não se alfabetizam são os candidatos à reprovação e aficarem atrasadas no futuro —afirma a professora.

Ela ressalta que a aplicação da BNCC está acontecendo à margem das decisões do governo federal.

— Curiosamente, o Brasil está vivendo um momento interessante da política educacional, mas daquilo que não depende do governo federal. Muito por causa dos estados que estão adaptando a BNCC para currículos locais. Isso deve levara uma melhor aprendizagem dos alunos, já que define oques e espera anoa ano deles.

5 Acesso ao ensino superior

A expansão do ensino superior foi definida por Weintraub como uma “tragédia”. Para ele, o país deveria priorizar áreas como a educação básica. Mas não é isso o que diz o Plano Nacional de Educação. O documento, de 2014, tem como uma de suas metas fazer com que, até 2024, 33% dos jovens de 18 a 24 anos estejam matriculados ou tenham concluído a etapa.

Em 2017, o índice era de 23,2%, segundo a Pnad Contínua. Para Nelson Cardoso Amaral, professor da UFG e especialista em ensino superior, ainda que o acesso tenha aumentado —puxado por ações como o programa de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), de 2007, e o impulsionamento do Financiamento Estudantil (Fies), a partir de 2011 —, incluir brasileiros na universidade é um dos maiores desafios do país. A meta, diz, foi “dificultada pela emenda do teto de gastos e se tornou inviável com o panorama atual de cortes”. Hoje, as universidades privadas detêm cerca de 88% das matrículas na etapa.

Entre as públicas, as federais ficam com 4,5% das matrículas. Se, de um lado, esse número aumentou como Reuni, de outro o orçamento sofreu seguidos cortes a partir de 2014. Neste ano, as federais tiveram R$ 2,08 bilhões contingenciados, de R$ 6,99 bilhões previstos no orçamento discricionário. Para Robert Verhine, especialista em avaliação da educação superior, faltou planejamento para novos campi durante a expansão:

—É possível expandir de modo racional. Temos que pensar em um sistema em que haja articulação entre as universidades para garantir que cada uma não tenha finalidades duplicadas com instituições a seu lado.

6 Incentivo à pesquisa

Um dos alvos mais sensíveis da política de contingenciamento do governo, a pesquisa científica é citada como elemento-chave para a promoção do desenvolvimento do país. Na esteira dos cortes no MEC, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), uma das principais agências de fomento à pesquisa, ao lado do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) — que é vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) —, sofreu um bloqueio de mais de R$ 800 milhões em seu orçamento. No início do mês, a Capes anunciou a suspensão de 3.474 bolsas de pesquisa, e o presidente da instituição, Anderson Correia, não descartou novos cortes. O quadro pode agravar uma situação já difícil.

Para Robert Verhine, também professor aposentado da Universidade Federal da Bahia, se o Brasil quiser ser relevante internacionalmente, o campo deve ser poupado: — O principal problema do ensino superior, na minha opinião, é a produção de conhecimento. Estamos perdendo nossa capacidade de pesquisa, e sem isso não teremos novas tecnologias, não produziremos soluções para problemas.

No Brasil, a pesquisa está ligada às universidades. Se perdermos essa massa crítica, perdemos qualquer autonomia no cenário internacional e ficamos dependentes do exterior. A estagnação do país na área já vem sendo percebida pelos rankings. O Brasil ocupa a 64ª posição no Índice Global de Inovação entre 126 economias listadas. O ranking é elaborado pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI).